Microcontos publicados na revista "minguante"



Calçada à portuguesa

No dia em que fez 100 anos, Oscar Niemeyer acabou de ler pela centésima vez o romance “Os Maias”. Depois de pousar cuidadosamente o livro sobre a maquete do novo aeroporto de Lisboa, desceu do seu ateliê na cobertura do prédio da Avenida Atlântico, no Rio. Ao mesmo tempo, na aula de Filosofia do escritório do décimo andar, a rapaziada discutia sobre literatura portátil. Quando entrou no local Oscar ouviu, do alto da sua sabedoria, uma das aspirantes a arquitecta perguntar à amiga se conhecia Eça de Queiroz, o embaixador da língua de Camões na pátria de Shakespeare. Que não, a outra mocinha só conhecia a Raquel de Queiroz. Talvez esse gajo fosse irmão dela, não? O arquitecto sentiu um calafrio em todos os pilares do corpo, e um peso de muitas letras sobre os ombros. E disse, lacónico, pós-moderno e avesso a estatísticas do Eurostat: ‘Você, garota ignorante, não pode trabalhar mais aqui. Vá polir calçada!’.


Júlia

Correspondi ao desejo dela, quando nos pediu para tapar os olhos. Tapar os olhos era o desejo mais insidioso que se poderia esperar de uma jovem que se vai despir na praia. Os meus companheiros de areia, todos pré-adolescentes a olhar para uma rapariga, também levaram as mãos à cara como se não quisessem ver o milagre das rosas. Sei-o, porque olhei entre as frestas dos dedos e vi, claramente visto, os botões rosáceos daquelas maminhas lindas que se ofereciam, só ao nosso olhar.  


O umbigo

Estávamos a ensinar o M a fazer sexo. Ele esbracejava entre a roupa da C, sempre disposta a estes prazeres adolescentes do corpo, procurando o sítio certo.  Era mais que certo que não sabia onde o procurar, era caloiro na matéria. Nós, cá de cima da estrada de terra batida, deitados sobre o barranco a céu aberto que fazia navegar os esgotos para o rio, orientávamos o acto. A certa altura, ele, desapossado de qualquer vergonha da ignorância, disse-nos que já lá estava, num pequeno mas atraente orifício da barriga. O que é que você faria perante tamanha certeza ontológica? Nós rimo-nos, como moços pequenos que éramos. Mas eu lembro-me de ter gritado para o fundo do barranco: "Não é aí pá, é mais abaixo!". Ninguém é obrigado a saber o verdadeiro lugar do sexo.


O burro da Ti Hermínia

A minha família diz-me que, quando eu era pequeno,  todas as vezes que a Ti Hermínia vinha à aldeia vender hortaliças e outras primícias, eu sentava-me no poial admirando orgulhoso o seu burro. E que dizia sempre: "Quando for grande quero ser como o burro da Ti Hermínia". Lembro-me disso. Ou talvez essa seja apenas uma memória incorporada em mim, de tanto a ouvir dizer. Hoje, sinto-me como esse burro, orgulhoso de mim próprio.


Mensagens populares deste blogue

Conto Trinta Anos Depois

Alte e o seu dia de Maio (artigo no jornal «Ecos da Serra»)

3 Poemas publicados