Crónicas no jornal «barlavento»



Pode o rio Arade ser um deserto que doa a alma?
(publicada em 30 de Março de 2006)

A minha primeira ideia do Arade era a do rio que desaguava nas pedras, lá para a ponta da areia na Praia da Rocha. Ali em frente de Ferragudo, terra de lamas, de fábricas e de um convento secreto.
Mais tarde comecei a perceber que o rio Arade não nascia ali, ao pé da minha casa. Vinha de longe, provavelmente de muito longe, pois de vez em quando trazia as laranjas de uma terra distante, que eu não conhecia, mas saboreava, depois de as limpar da terra argilosa que deixava esculturas de barro nos dedos. Comecei a perceber que, aquele rio pardacento que refrescava o meu corpo nos verões de Portimão, vinha das serranias abruptas do Algarve, mas deveria ser adocicado por culturas tão antigas quanto belas nalguma cidade da moirama.
Na escola fui entendendo melhor, até que ela mesmo me transporta para Silves, para conhecer as cadeiras da secção preparatória que me retornaria ao liceu da minha terra. De longe, preferi aos bancos da escola os humores do rio. Todos os dias o atravessava – na ponte medieval que os saudosos românticos arabizavam – cheirando o perfume das laranjeiras de pés molhados enterrados no leito do rio, na quinta do mata-mouros, pois então. Habituei-me a roubar laranjas nos paralelos das margens do rio, que naquela altura não podia atravessar a vau, só de barco. Muitas vezes olhava e ajudava na pesca da eiró, pendurada nos pandulhos de rede ensardinhada que os velhos pescadores – operários corticeiros de outrora – dependuravam no cais do rio entre a dita ponte e a paragem da camioneta da estação.
Com esta brincadeira fiquei dois anos em Silves e se escolhi jogar futebol no Silves Futebol Clube foi também por culpa do rio. Nos treinos sentia o cheiro das águas, as mesmas que corriam até à minha casa e que me encontravam no dia seguinte, de manhã, quando rumava de novo à cidade. Os meus passeios não ignoravam as ladeiras de calcário ou os pós de grés do castelo, mas os meus passos, inelutavelmente, desciam para aquelas águas curiosas e secretas.
Muito, muito mais tarde desci o rio, de canoa. Foi ele que me levou rio abaixo até às velhas fontes de Estômbar. E no dia seguinte me transportou rio acima até à cidade de Silves. Depois, passei debaixo da ponte e terminei no pego fundo, onde em tempos idos tinha mergulhado de cima duma velha nogueira marginal. Para lá dela a canoa não passava: um reles fio de água, silvas, lodos.
É o que o rio Arade é hoje em dia: um reles fio de água, silvas, lodos, porcaria. Matar o Arade é matar a cultura árabe. Exagero? Sem o Arade o que cantariam os poetas de Silves? Não foi o deserto que os encantou! O deserto é o destino dos desterros de Silves, terra do rio e das águas santas que nunca se esquecem.
Pode o rio Arade ser um deserto que doa a alma?

Bernardo de Passos, poeta da bandeira e da alimentação saudável
(publicada em 9 de Março de 2006)

É um facto que os poetas portugueses estão esquecidos. Explicando, tirando Pedro Mexia, que aparece em tudo o que são jornais, editoras, blogs e colóquios, quem se lembra dos outros? Na verdade só quando fenecem e o coro do país entristece-se.
Mas se há dias poéticos, hoje foi um deles. E tudo por causa de um poeta algarvio, de S. Brás de Alportel, Bernardo de Passos. Não sei se direi que o poeta é de S. Brás natural! Parece que o governo quer acabar com as freguesias que correspondem a concelhos; e nesse caso...
Bom, mas vamos ao que interessa. Antes de separar a “Notícias de Sábado” - revista do DN do dia - para o contentor do ecoponto, entretenho-me a recortar uma ou outra crónica para leituras dos meus alunos. E lá aproveito para ler a crónica do Francisco José Viegas sobre restauração. Mas eis que dou com uma pequena notícia no fundo da página sobre o ensino do estômago. Leram bem! Trata-se de um projecto do Gabinete de Nutrição do Centro Regional de Saúde Pública que avalia a qualidade da alimentação nas escolas públicas. O que interessa aqui, e que tem a ver com o poeta de «Ecos da Serra», é que é justamente a Escola do Poeta Bernardo de Passos, de S. Brás de Alportel, que merece a distinção do Diário de Notícias. Tudo porque a cozinheira da Escola promove o peixe grelhado, o arrozinho de polvo e – manjar dos deuses – a massada de tamboril. Da sopa já eu tinha ouvido falar, muito e bem. De parabéns está a D. Maria Otília Neto e o poeta Bernardo de Passos, um bom garfo neste caso.
Mas esta história cruza-se com outra. Deram pelos novos equipamentos da selecção de futebol para o mundial 2006? Camisolas marrons e calçanitos verde tropa?! E equipamento alternativo preto? Não é que eu me perca de amores pela bandeira verde-rubra, cheia da coloração dos países pós-coloniais e já gasta de tantos anos de dinastias republicanas. O caso que me trouxe aqui, é que o poeta Bernardo de Passos também foi um defensor acerado desta bandeira, no seu tempo de arrojo patriótico. E esgaravatando nas simbologias da república encontro-o a versejar assim:

[...] Ela é tão nossa já, a guiar-nos os passos...
De tal forma diz Pátria, essa bandeira bela,
Que ou esta Pátria vive erguendo-a bem nos braços
Ou esta Pátria morre amortalhada nela! *

Vejam lá se a bandeira também não nos alimenta, de forma saudável?

*esta quadra devo-a ao trabalho de Teixeira, N.S. (1991). A Memória da Nação


A Feira da Microsoft
(publicada em 9 de Fevereiro de 2006)

Estou a escrever este texto num processador de texto Word, do Office da Microsoft. Também estou ligado à rede através de um telefone fixo, da PT, que tive de instalar para usufruir do acesso ADSL do Sapo. Nada mais simples. Só que a simplicidade é enganadora. É que talvez não seja tão simples assim. Talvez eu pudesse usar outro programa de processamento, outra ligação telefónica, outro acesso à rede!? O problema não está na falta de concorrência. O problema, simplesmente, decorre da visão tecnocrática do estado de impor a sua lógica de mercado aos cidadãos. E essa lógica, para não desmerecer, é a lógica do seu negócio. De um negócio centralizador e autárcico, que privilegia as suas empresas e os seus ex-governantes.
Perceba-se a feira da Microsoft nesta lógica. Cinco ministros de peso assinam os acordos. Mil pessoas vão ser formadas pela empresa de Gates. Este mete ao ombro a Ordem do Infante. Mas isto são ninharias de publicidade, comparado com o fecho da coisa.
Bill Gates em entrevista a Judite de Sousa na RTP1: 30 minutos de publicidade à Microsoft, à hora do jantar. Percebendo as deixas, o homem não perdeu uma única oportunidade para levar todas as respostas para a panaceia das crises do mundo: a tecnologia informática e a sua multinacional. Na ajuda aos pobres do mundo, claro. Ora com a Fundação, ora com a empresa. Mas foi Judite de Sousa que lhe estendeu o tapete vermelho. Que organizou uma conferência de imprensa para Bill Gates explicar a sua relação empresarial com o governo de Sócrates. Excelente serviço público da TV do Estado. Para encerrar a feira em beleza.


A Capital, resgata ou afunda?
(publicada em 19 de Janeiro de 2006)

Sim, a Capital da Cultura acabou em Faro. E eu que estou tão farto de bater no céguinho, ganho um apetite voraz pela coisa.
O pão e o circo levantaram alas, e agora muita gente faz balanços e contas: quantos espectáculos e espectadores, qual a média por concerto, quais os perfis e as motivações. Já agora, quantos almoços servidos, quantas senhas de gasolina pagas, quantos sacos de cimento gastos no Teatro Municipal, quantas horas de espera, quantos programas impressos?
Tudo isto serviu para resgatar o Algarve da marginalidade cultural, comissário dixit. Eu rio-me! Eu prefiro continuar marginal. Digam lá se não é melhor ser marginal, em Alcoutim, em Loulé, em Cachopo, em Pechão, vivendo o quotidiano entre quadros de Miró, palavras de Pessoa, músicas de Vivaldi?
Pois, pois, os algarvios são agora a fina flor dos novos públicos da cultura, uma espécie de consumidores culturais de élite, aqueles que enchem teatros e cinemas, bibliotecas e conservatórios. Uma espécie de arruaceiros da bola (mas bem comportados) que se sentam a ver e ouvir os produtores de cultura e no fim da festa descortinam prazeres e consequências estéticas. Mas, trôpegos e falhos regressam logo ao ramerrão da sua vivência: novelas, concursos e futebol, à espera do próximo evento de resgate.
Para seu bem têm, a bater-lhes à porta, os velhos amigos (os agentes culturais esquecidos) que dia-a-dia vão construindo peças de teatro, fazendo o ensino da música, lendo e editando poesia, contando histórias e contos, ensaiando músicas e cantos, discutindo filmes. Esses amigos estão cá sempre, presentes em vãos de escada, em casas caídas, em praças e jardins, todo o ano, todos os anos. Em 2005, estiveram cá, apesar de se ter falado pouco deles, na Capital. E depois dela, eles vão continuar a fazer os seus trabalhos de Hércules: levar a palavra ao Algarve. Esses, os amigos, resgatam verdadeiramente. A Capital afunda!

A ética dos jornalistas e a democracia
(publicada em 12 de Janeiro de 2006)

Anda uma pessoa a ensinar aos alunos que qualquer trabalho de investigação, de cariz académico, deve respeitar as suas fontes de forma ética e depois dá com isto: um tribunal condena um jornalista de investigação a 11 meses de prisão por se recusar a revelar uma das suas fontes (só porque a investigação respeita a drogas e os responsáveis policiais nada investigaram).
A ética, na investigação, manda aceitar um informante (prefiro esta expressão ao invés de informador que me lembra os esbirros bufos da Pide, no tempo do fascismo) com respeito sobre a salvaguarda da sua identidade, da ressalva da sua idoneidade social, com a confidencialidade relativa às suas informações e narrativas, e com o anonimato de protecção que se lhe reconhece. Só isso permite a um informante, em contrapartida, aceitar ser um sujeito pertinente em qualquer investigação, que sem ele não se fará.
Pelos vistos o tribunal nada entende disto e apenas olha o lado jurídico do problema. A partir daqui não há qualquer investigação que este jornalista possa fazer, sujeito a qualquer denúncia das do tipo que enviavam inocentes e cidadãos responsáveis para os calabouços da polícia fascista do estado novo. Talvez se pudesse propor uma cadeira de ética de investigação para os nossos futuros juízes. Os que oficiam, esses, poderiam fazer um curso de reciclagem, com os nossos jovens alunos que sabem muito do dever de respeitar as suas fontes.
Mas o que se disse atrás -- lembrando o caso do jornalista do Expresso Manso Preto, que viria mais tarde  a ser absolvido --  seria apenas uma história passada se o mesmo não se tivesse a passar de novo. Desta vez perante os nossos olhos de algarvios embevecidos com a Capital da Cultura. É que a jornalista do Diário de Notícias no Algarve, Paula Martinheira, foi constituída arguida de um processo por desobediência ao tribunal, após se ter recusado a revelar as fontes de informação de uma notícia publicada em Abril de 2003.
No barlavento, de 5 de Janeiro, Elisabete Rodrigues apela ao “Direito de saber”, um direito de informação de que todos os cidadãos usufruem de acordo com a Constituição. E esse direito de saber é quase sempre edificado e suportado pelas informações anónimas, graciosas e responsáveis de muitas fontes confidenciais, que o jornalista tem o dever de respeitar no seu processo de construção da notícia. Trata-se de um dever ético e deontológico de qualquer jornalista. Um dever que os tribunais têm que começar a perceber. Um dever que também preserva e consolida a democracia.


Casimiro de Brito, poeta do pleno e do vazio?
(publicada em 24 de Novembro de 2005)

Em Loulé, realizou-se (18 de Novembro passado) uma Conferência sobre Casimiro de Brito, no âmbito de Faro, Capital Nacional da Cultura 2005. Álvaro Manuel Machado, conferencista convidado, traçou um excelente perfil da obra poética e literária do poeta, em torno da ideia central de pleno e de vazio, que considera serem as marcas filosóficas de Casimiro. Aproveitei essa deixa, no final da conferência, para metaforicamente sublinhar o contraste entre a vasta e qualitativa obra do poeta e o número de pessoas na sala (seis ouvintes e mais três pessoas da organização).
Casimiro, sendo louletano, não é conhecido em Loulé. Ou melhor, é conhecido por uma minoria pouco significativa de gente ligada à cultura. Aliás, entre a terra e ele há ainda muita coisa por esclarecer. E, notoriamente, estamos perante um fenómeno de rejeição recíproca, muito mais por obra da terra do que pela obra do poeta. Digo eu. Sobre este assunto, aliás, já tive oportunidade de o referir e escrever bastas vezes. É o poeta que nos esclarece, quando a certa altura num poema refere:
(...)
e eu um louletano com milhões de sonhos
tão longe e tão perto na escala do tempo
Loulé minha terra natal
tão longe e tão perto de mim
como és grande e pequena Loulé assim.

Perceberá o leitor, se for procurar os muitos livros editados de Casimiro, nas livrarias (ou na única livraria com esse nome) da cidade ou pesquisar o seu nome na Biblioteca Municipal Sophia de Melo Breyner Andresen, em Loulé. No primeiro caso nada se encontra. No segundo não sei se já está disponível ao leitor alguma obra. Há um ano atrás nada estava.
Por ter sido desde sempre aceite e acolhido em Faro, o poeta assume um relacionamento mais directo com a capital, onde os seus livros se encontram nas prateleiras de poesia da Biblioteca Municipal António Ramos Rosa, poeta farense e seu companheiro de lides poéticas. O próprio Casimiro de Brito dirigiu colecções de poesia em Faro, nos anos 60 e mais recentemente nos anos 90 (desta vez a convite da Câmara de Faro, no âmbito da promoção da biblioteca local).
Mas a conferência teve outro dado esperado. Álvaro M. Machado assentou o ponto de partida poética do autor no movimento da Poesia 61, em Faro (anos 60), em torno dos célebres «Cadernos do Meio Dia». Percebe-se que se mantem, ainda, muito pouco conhecida, portanto, a experiência de Casimiro de Brito em Loulé. Foi na sua terra natal que, em 1956, lançou a página literária “Prisma de Cristal” na Voz de Loulé, em torno da qual se juntaram Ramos Rosa, Gastão Cruz, Maria Rosa Colaço e muitos outros.
Entre 1956 e 1959 Casimiro de Brito deu corpo ao chamado Movimento Prisma, publicando textos e poemas de Afonso Cautela, Eduardo Olímpio, Emiliano da Costa, Vicente Campinas, poetas africanos, brasileiros e espanhóis, para além dos nomes referidos atrás. E foi no seio desta experiência pioneira e primacial que Casimiro de Brito escreveu e publicou também os seus primeiros poemas: 12 poemas em nove números do Prisma, para além de duas quadras premiadas em Jogos Florais, estas assinadas como Cavaco Correia – os seus dois outros nomes. Este período foi, ainda, fértil no lançamento de vários cadernos de poesia, como o «Encontro», o «Convívio» e o «Caderno Zero». No corolário deste processo de construção poética Casimiro de Brito publica o seu primeiro livro, em 1958, «Poemas da Solidão Imperfeita», com poemas escritos entre 1955 e 1958.
No próximo ano, 2006, passam 50 anos do aparecimento do “Prisma de Cristal”. Tempo para encontrar formas de comemorar condignamente o evento. Casimiro de Brito merece-o. E Loulé tem essa dívida!


Golfes e casas ilegais na ria formosa:uma crise de civilização no Algarve
(publicada em 1 de Setembro de 2005)

Não vos tinha dito que a propalada crise do turismo no Algarve é uma panaceia para um muro de lamentações e pedinchices dos principais interessados: os empresários do turismo e os autarcas responsáveis pela crescente betonização do litoral? Claro que, agora, a conivência de governantes faz parte deste cartel.
Desabafo a propósito de mais um campo de golfe que se anuncia, desta vez para os terrenos cobiçados e classificados do Ludo, ali entre a Praia de Faro e a Quinta do Lago. Ali mesmo a dois passos da casa da vice-presidente da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Algarve, o que é apenas coincidência. Uma dupla coincidência. Primeiro porque Valentina Calisto foi durante muito tempo a responsável pela gestão do Ambiente no Algarve e segundo porque a área em causa é classificada por várias normas e directivas. Até está integrada num Parque Natural, veja-se só. Mas como o ICN (Instituto de Conservação da Natureza) não é mais do que um verbo de encher, ou melhor, um verbo vazio de orçamento, de técnicos, de fiscalização ou de outro qualquer sinal de vida, o campo de golfe tem muitas probabilidades de se estender. Sinal de que a seca, os incêndios, a constante salinização das águas, a defesa da fauna selvagem, os estudos científicos sobre a flora, são mesmo para pôr de salga nas marinhas do Ludo. Esqueçam a galinha sultana - que recuperou ali da sua mais que provável extinção nestas paragens -, a garça cinzenta ou a cegonha negra e todas as aves constantes da Directiva de Ramsar. Queixem-se, mais uma vez, da associação Almargem que anda sempre a chatear os autarcas, que por sua vez a acusam despudoradamente de fundamentalista, mas não digam que o turismo está em crise e o Algarve em colapso!
Há dias Vital Moreira, no «Público», mostrava o Algarve da incúria da fiscalização, dos esquecimentos dos governantes, dos compromissos dos autarcas. Nada que os algarvios não conheçam. Como tive oportunidade de dizer, logo após o anúncio das medidas ambientais ligadas à aprovação do POOC (Plano de Ordenamento da Orla Costeira) do perímetro Vilamoura/Vila Real de Santo António, o derrube das casas ilegais no perímetro dunar das ilhas barreira, na Ria Formosa, seria para esquecer alguns meses depois. Isto, porque muitos dos interessados nos “direitos adquiridos” das casas ilegais são ou foram responsáveis de organismos da administração a vários níveis. Aliás, para corroborar esta minha ideia, o actual governador civil, questionado pelo «Jornal de Notícias», veio logo a terreiro afirmar que não se oporia se a sua casa tivesse que ir abaixo. Mas tratou de acrescentar que os seus antecedentes foram sempre cumprindo obrigações legais relativas à implantação da casa. Muitos seguir-lhe-iam o exemplo, claro. Quem é que não segue qualquer governador civil?
Como era de esperar, os fogos aqueceram os matos e por consequência, arrefeceram as casas ilegais da Ria Formosa. O governo esqueceu o Plano e nenhumas medidas se conhecem sobre o derrube das casas ilegais. Por isso o melhor é continuar a construí-las. Para as ver basta percorrer as margens da Ria na Praia de Faro e verificar que todos os dias nascem ou se reconstroem habitações. Na maré vaza, olho-as em aglomerado de madeira, mas quando regresso na maré cheia já é a alvenaria que suporta as águas e os “direitos adquiridos”. Mais rápidas e prolíficas que os cogumelos que lhes deram o mote.
Mas nós é que estamos errados. Nós, que não temos o descaramento de pegar em meia dúzia de tábuas velhas e uma caixa de pregos para armar uma cabana de madeira sobre a duna da Barrinha, só para guardarmos a nossa caninha de pesca. Nós, que parecemos uns parolos, por que queremos o Ludo para passearmos com os nossos filhos, de binóculos em punho, a olhar as cegonhas e os pernalongas junto dos ninhos. Nós, que escrevemos estas coisas em vez de estarmos a preparar as nossas bandeirinhas rosa-laranja para os comícios da rentrée no Pontal ou na Pontinha. Nós, sim, somos uns incivilizados e por isso só nos resta mudar de civilização.

Rua João de Deus, em Alte
(publicada em 28 de Julho de 2005)

Uma investigação sobre o Grupo Folclórico de Alte, leva-me a procurar fontes de referência a práticas musicais e coreográficas, na mesma aldeia, antes da fundação do Grupo em 1938. Uma das fontes  mais importantes é o jornal «O Aldeão», dirigido por João de Deus e editado, entre 1912 e 1913, na aldeia de Alte. Ao pesquisar os arquivos da Junta de Freguesia local verifiquei, mais uma vez, que o jornal «O Aldeão» não é conhecido. Na Junta apenas existe o «Folha de Alte», periódico dirigido por Graça Mira (antigo secretário de João de Deus em «O Aldeão»), entre os anos 1922 e 1934.
Como sem conhecimento não há memória, tempo, talvez, para o Arquivo Histórico da Câmara de Loulé disponibilizar, aos altenses, cópias dos 28 números do seu primeiro jornal. Em debate sobre o tema, a Divisão de Cultura promete colocar no futuro Pólo Museológico de Alte, um conjunto de microfilmes do jornal. Melhor ainda.
Mais tarde, falando com a Dona Lourdes Madeira, directora do actual jornal altense «Ecos da Serra», respondo à sua pergunta sobre se conhecia «O Aldeão» e sobre se João de Deus teria estudos. Lembro que sim, que João de Deus foi seminarista em Faro, que era culto e escrevia bem, que criou à volta dele uma plêiade de jovens republicanos, escrevinhadores no jornal, entre os quais Graça Mira, mais tarde fundador da Folha. Recordo-lhe que, várias vezes, «O Aldeão» noticiou os célebres bailes do Centro Republicano, que duravam até alta madrugada e eram abrilhantados pelo gramofone de José Francisco da Encarnação Madeira, pai da minha interlocutora, da D. Lourdes exactamente. Perguntei-lhe por que razão João de Deus não era reconhecido em Alte, não tinha o seu nome numa rua da aldeia, por exemplo, e a senhora disse-me que ele era muito crítico, falava mal de todos. Compreendo que a ausência de consensualidade não ajudou João de Deus a obter, na sua terra, a devida recompensa por ter ajudado a fundar um Centro Escolar e Republicano que foi uma verdadeira escola política e cultural da aldeia.
Mais tarde, quando retorno ao arquivo da Junta de Freguesia, encontro o livro de inscrições de sócios do referido Centro Republicano. Entusiasmo-me, mas resolvo deixar para outro dia a pesquisa dos nomes dos sócios. A paixão nem sempre é boa conselheira. Mas outra novidade ainda me esperava. Quando volto a falar com D. Lourdes sobre Graça Mira ela diz-me que ele se suicidara, em Alte, no dia 1 de Maio de 1939, “escolhendo” um dia em que a aldeia estava cheia de visitantes. Dia fatídico este.


A propósito de uma conversa sobre técnicas de escrita
(publicada em 19 de Maio de 2005)

Não, não vou falar das entrevistas do «Expresso» às célebres tendências genéticas do Bloco de Esquerda. Até porque já não me apetece o mainstream do dito cujo (do jornal, entenda-se). Agora, boa, boa, é mesmo a notícia do «barlavento» sobre a candidatura de J. Mendoza (não é publicidade, juro) à Câmara de S. Brás de Alportel. Sabem porquê? É que o artigo dá a entender que aquele concelho é um autêntico reino de opressão. Sim, porque “ser social-democrata no concelho é muito difícil”. E eu a pensar que era por causa de eventuais pontapés à Eusébio, mas não. A dificuldade está no facto de que “muitos dos nossos (dos deles claro) acham mais interessante ficar em casa a ver telenovelas ou futebol, do que lutar pelo futuro da nossa terra”. Social-democrata sofre!
*
Ele é o único que tem coentros serôdios, onde a folha abunda viçosa e reticulada. Todos os outros (e outras) vendedores do mercado têm-nos espigados e cheirosos da flor, mas ineficazes no sabor, quando juntos da conquilha fresca da Ria. Quando lhe pergunto porquê, responde-me: “Eles não sabem semear. Plantam-nos como pelo em lombo de cão! O coentro precisa de espaço para respirar, para crescer. Isto, é como as pessoas...”.
*
AA exulta com os foguetes enviados na noite de 25 de Abril, parece que pela comissão fabriqueira da mãe soberana, para comemorar o evento. E acha que isso é motivo de regozijo pela ligação entre o religioso e o político no festejo da liberdade e da democracia. Em Portugal, nunca a igreja oficial (a ICAR) esteve com a liberdade e não é agora que o fará. Aliás quer-se distância entre as duas esferas, a igreja e o estado, apesar da “Concordata” ser de facto uma grilheta que cola o estado à igreja e não o contrário. Infelizmente não estamos nos países da Teologia da Libertação.
*
Compro o «Courrier Internacional» por mera curiosidade. Desilusão, ou talvez não. Um jornal que é uma manta de retalhos da imprensa internacional. Nada que não possa ser lido nos sites da maior parte dos jornais que lá figuram. Alguns acrescentos de cronistas, como José Gil e Mia Couto, não me parece justificar a compra. Se comparar com o «Le Monde Diplomatique», que assino há três anos, é como comparar a noite com o dia. O MDiplo - como o conhecemos - faz jornalismo de vanguarda, ensaio e ciência política. O CI apenas vende mais, porque tem a Impresa por trás. Continuo nas minorias.
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Ainda bem que existe um pensamento suburbano que escreve sobre a morte com ar de quem faz dela a ficção da vida. Melhor estão os povos que perante a morte riem e se embebedam percebendo que é sobre os vivos que recaem as maiores desgraças. Por exemplo, a de ler desaforos tão "cultos", quanto etnocentristas.
*
Ficámos a saber que Valentim Loureiro irá candidatar-se à Câmara de Gondomar como independente, porque o seu partido não o apoia. Segue, assim, os gostos de Isaltino Morais. Duas razões óbvias: os fósseis de dinossauros das autarquias, teimam em persistir na “maquiavelice”; os enjeitados da justiça continuam a crer que o povoléu gosta do mimetismo das diatribes e dos pequenos favores.
*
No dia do município de Loulé, o presidente da Câmara fez um discurso tenso, de propaganda e legitimação da governação autárquica. Dele, apesar das muitas medidas referidas, ficou a falta de rumo para os destinos do concelho de Loulé. Mesmo a propaganda de pouco serviu. Na assistência, pelo meu olhar de commum sense, parece-me que a maioria estava na oposição. Palmas, só para o Zé Carlos que lá recebeu a medalha, vestido de tshirt.


Bolonha: cogito ergo sum?
(publicada em 24 de Março de 2005)

Tinha iniciado a aula com o 1º ano. A ideia era estudar o tema da educação comunitária, uma das formas mais interessantes da educação não formal, normalmente desenvolvida nas pequenas comunidades desfavorecidas de aprendizagens. Distribui pequenos textos de um capítulo do livro de Moaci Carneiro «Educação comunitária: faces e formas» que, em conjunto, constituem um capítulo do mesmo. Normalmente circulo pelos grupos a apoiar a leitura e o debate, pois neste caso o objectivo era desenvolver capacidades e atitudes relacionadas com a expressão oral e a comunicação. Porta-vozes dos grupos deslocam-se para os grupos com os números seguintes, para explicar o texto. Depois, é o grupo receptor que apresenta à turma os conceitos ou tópicos-chaves de cada texto que lhes foi comunicado.
Um dos grupos pediu a minha ajuda, porque não percebia nada do que lia: Ó professor, já lemos três vezes e não entendemos nada! Pedi que me exemplificassem e disseram-me que não sabiam o que era “cogitar”. O autor do texto escreve com uma linguagem filosófica, às vezes hermética, mas “cogitar”, meu deus, simplesmente quer dizer pensar; nunca ouviram falar de Descartes, que falava “Cogito Ergo Sum” – penso, logo existo? Arregalaram-me os olhos de espanto, as três alunas, como se estivessem a olhar para um palácio das mil e uma noites. Como as perguntas eram muitas, sentei-me na mesa para ajudar na leitura do texto. E verifiquei a total ausência da compreensão escrita, o reduzido vocabulário expressivo, o desconhecimento da língua. Melhor seria ter um dicionário ao lado. Têm que ler com um dicionário, que eu depois explico o resto, a coerência frásica, o sentido do texto. Bom, no final, ao menos o grupo receptor deste texto usou as explicações dadas por mim às alunas, sinal de que assim o transmitiram.
Senti-me a explicar alguns conceitos ao meu filho, de sete anos, quando me bombardeia com o pedido de sinónimos e significados das novas palavras do seu dia.
Pensei nos erros de Descartes. Na possibilidade de levar o livro de Damásio para a aula e desmistificar aquilo que disse do filósofo francês. Penso, logo existo! Ou melhor, sinto, logo penso. No final: existo, logo penso! O melhor é ler os livros com os meus alunos, começar a fazer jus às novidades da Declaração de Bolonha: auto-formação e estudo acompanhado, nas aulas e fora delas, que isso sim é o futuro do ensino superior. Pensemos nas tertúlias que poderíamos fazer com os alunos, de manhã na relva verde do estádio da Penha e à noite no Ministério da Cerveja. Não, não estou a brincar. Esta pode ser uma das soluções do processo de ensino/aprendizagem no ensino universitário. Agora, é decisivo que se pense uma Declaração, a preceito, para o parente pobre do sistema: o secundário.


A mão invisível do mercado
(publicada em 27/01/05)

No jornal «O Louletano», de 21 de dezembro passado, os comerciantes louletanos da ACRAL - em tempos natalícios de miséria de compras -, viraram as armas para os comerciantes oriundos da China, acusando-os de actividades comerciais eivadas de ilegalidades e sem vigilância. Até aqui, tudo bem, apesar de não serem apresentadas nenhumas provas. Só que a linguagem utilizada, é a manifestação latente de uma xenofobia que pode abrir caminho a discrimações intolerantes.
Pelo vistos o conceito de mercado (leia-se mercado livre para a concorrência entre produtos e empresas) só serve quando interessa aos próprios. Um sentido unívoco que a globalização económica e a mundialização da economia destruiu, extremando a concorrência desenfreada, a deslocalização das empresas e a  exploração da mão de obra mais barata. Assim, tudo é possível e o mercado aberto tem destas coisas: a concorrência de produtos baratos a cento e cinquenta ou a trezentos, o uso da mão de obra familiar e a expansão do consumo popular. Ora é exactamente este consumismo que não quer saber das ameaças dos monstros das grandes superfícies que vendem tudo - e até o lazer do fim de semana – ou da beleza arcaica do contraste do comércio tradicional que já tem muito pouco, ou nada, da tradição. Há mais de duzentos anos, o economista Adam Smith criou o conceito célebre da “mão invisível” do mercado. Ora, esta mão invisível já não é a mão da ACRAL, nem a mão dos comerciantes oriundos da China. A mão, bem visível, é a do capitalismo globalizado e dos monopólios que o sustentam. Algo que os estados cada vez mais propiciam e aos quais se subjugam, na sua crescente gestão do estado mercantil. Por estes dias o presidente da nossa república esteve na China, isso mesmo, a dar uma mãozinha.
Mas a atitude perante os estrangeiros tem ainda este sentido: só nos interessam os que nos favorecem! Que venham jogadores de futebol para as lusas equipas, engrossar as contas de clubes SAD e trabalhadores para as empresariais obras, pois sim! Mas outros, que nos façam concorrência, nem pensar! Pois é, o Francis Obikwellu é um excelente paradigma: “é um preto nigeriano a trabalhar nas obras”; depois “é um português genuíno medalhado nas olimpíadas”. Anda aqui a “mão invisível” a criar estereótipos sobre os estrangeiros. Esterótipos perigosos.

Reprogramar Faro, capital nacional da cultura, 2005
(publicada em 23/12/04)

Nove milhões e meio de euros é muita nota. Tanta, que merece mais umas pequenas notas a acrescentar ao orçamento de Faro, Capital Nacional da Cultura 2005. Uma missão que, disse em tempos o secretário de estado dos bens culturais, iria transformar a face do Algarve. Declarações megalómanas para quem nada conhece do Algarve e por estes dias vive os seus últimos dias de gestão corrente. Aliás, nunca vi nenhuma campanha que mexesse fundo nas estruturas culturais. Bem, só a célebre campanha do trigo de Salazar, nos anos 30 e 40 do século passado. Mas essa destruiu os solos das florestas e das sementeiras, de outras culturas. No mesmo sentido, esta é criada de cima para baixo. Lisboa decide e Faro alinha, quando ainda marcava a agenda cultural no Algarve. Mas isso foi há tempos e em anterior gestão. Projecta um teatro municipal, que já vem do tempo do ministro Carrilho, que parece ser a nossa senhora do programa da capital da cultura, uma santa Engrácia que nunca mais fica pronta. A cidade arma-se toda, convoca a Santa Maria de Faro para imagem de marca, mas esquece os agentes culturais [já disse que sempre preferi a expressão actores] que há muito desenvolvem um trabalho estrutural em pesquisa e produção cultural. Sem dinâmica cultural, o município que governa a cidade, é como aquele jovem rei que não pode e menos sabe governar e convoca para seu regente alguém de outro reino. Os programadores culturais são prova disso: Jorge Queirós nas artes plásticas; Luísa Taveira na dança; Miguel Abreu no teatro; a Universidade do Algarve e Pedro Ferré na literatura; ninguém na música, nem música nos dão. Conhecem? Eu também não! Eu, a pensar, na minha “ingenuidade provinciana”, nos nomes de Manuel Batista, António Laginha, José Louro, Nuno Júdice, pela mesma ordem de funções; e para a música José Eduardo. Qual quê! Programar Faro, Capital da Cultura, com algarvios, ainda por cima competentes, seria “saloice” a mais [Lisboa dixit], nada melhor do que descentralizar comissários da capital, a verdadeira, como se fez com os secretários de estado há uns meses, lembram-se? Por isso dou por mim a pensar: será que vai acontecer à Comissão de Faro, Capital Nacional da Cultura, o mesmo que aconteceu ao governo, ou ela antecipa-se?

Nota: depois da escrita deste texto, conheci, via «Expresso», que aos nomes dos programadores foi acrescentado o de Anabela Moutinho, no cinema e de Luís Madureira, na música. Portanto, nada do que afirmo no texto é posto em causa.


A cultura cigana na escola
(publicada em 18/11/04)

A Sic deu e propalou a notícia: na Escola do Ensino Básico da Coca Maravilhas em Portimão, pais de origem cigana  entram na escola para bater em duas professoras, após uma repreensão a um dos seus filhos, por motivos de um despique entre alunos. Para dar a dimensão multicultural da escola, a jornalista diz que a mesma tem alunos de 21 etnias, que depois corrige para nacionalidades. Na verdade, sendo verdade a segunda asserção e não a primeira, isso não traz problema nenhum. Ouvida a presidente do conselho executivo, esta diz: "os ciganos têm uma forma própria de funcionar, têm mais solidariedade e pensam que podem fazer justiça pelas suas próprias mãos". Ora bem, sabemos que a entrada, na escola, de etnias diferentes traz com ela a entrada das suas diferentes culturas, com as quais é preciso lidar de forma intercultural, isto é, negociando as normas inerentes a cada cultura num processo participado por todos. A entrada de alunos de etnias diferentes na escola, designadamente da etnia cigana não deixa à porta da escola os seus traços culturais. Habituados à segregação e cultivando uma cultura baseada na desconfiança do "gadjo" [no não-cigano] e afastados da escola, enquanto marca educativo-cultural dos povos sedentarizados, os alunos ciganos ainda não integraram, no seu mecanismo cognitivo e cultural, os climas fechados, disciplinados e normativos dos espaços educativos. Isso deve entender-se, porque a única maneira de lidar com as diferenças étnicas é perceber as diferenças culturais de cada um. Acresce que esta escola se situa numa complexa área de realojamento habitacional, de uma enorme complexidade, que mostra a guetização dos moradores vindos de áreas degradadas, abandonadas ou destruídas pela industrialização. Afastados dos centros de decisão e por cause, dos centros do poder, a tendência não é só fazer justiça pelas suas próprias mãos, quer seja a justiça cigana ou a justiça lusa; nestes locais fomenta-se a xenofobia e o racismo, muitas vezes estimulado pelos media no seu papel de busca e promoção do reality show, da degradação humana.
Moral da história: quase sempre a xenofobia não está nas nossas declarações de intenção, quase sempre pretendemos afastá-la da nossa prática, mas ela espreita sempre que entra em risco a estabilidade dos "nossos valores" culturais.


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