O “Prisma de Cristal” e Casimiro de Brito em «A Voz de Loulé»

Quando, em 2004, pensei lançar uma página cultural neste jornal o amigo José Batista deu-me a conhecer um antigo suplemento, ou página literária que, em tempos, teria sido publicado em «A Voz de Loulé». Lancei-me na pesquisa desta fonte e no Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Loulé acabei por encontrar, no ano de 1956, o “Prisma de Cristal”. Lá estava, na página 2 de «A Voz de Loulé» nº 94, de 16 de Outubro de 1956, uma denominada ‘página cultural’ organizada por Casimiro de Brito [ver, na página ao lado, a sua reprodução digital]. Casimiro Cavaco Correia de Brito tinha nascido em Loulé em 1938 e tinha, na altura, apenas 18 anos.

Neste primeiro número, na secção ‘Caderno de apontamentos’, o seu organizador agradece ao director do jornal da altura, Dr. Jaime Guerreiro Rua. Para além destas notas, a página inclui: uma antologia com o poema “Pátria” de João de Deus; uma quadra de Cavaco Correia (pseudónimo de Casimiro de Brito); a colaboração de um leitor de Loulé, João Francisco Manjua Leal; um pórtico sobre o “Prisma”; e um apelo à colaboração e crítica dos leitores.

Em Loulé, Casimiro de Brito, então com apenas 18 anos, fazia já eco e participava em diversas tertúlias e criações poéticas. Na sua terra dá expressão ao chamado Movimento Prisma, fundando uma página literária no jornal local «A Voz de Loulé», nesse período sob a direcção de Jaime Guerreiro Rua. Em torno desta página o poeta agregou à sua volta amigos e conhecidos e publicou conteúdos culturais de muitos jovens, mais tarde consagrados nomes das letras e das artes, como Ramos Rosa, Gastão Cruz, Eduardo Olímpio, Afonso Cautela e Maria Rosa Colaço, entre outros. Para além da mancha de textos, a página era ilustrada com pequenos linóleos da autoria de Manuel Cavaco Guerreiro.

O “Prisma de Cristal” edita 26 números, durante cerca de 28 meses, terminando a sua vida cultural nestas páginas, no jornal nº 175, de 15 de Fevereiro de 1959. Durante a sua edição Casimiro de Brito saiu de Loulé para estudar em Faro, seguindo mais tarde para Lisboa. A partir do nº 2 [VL nº 95, de 1 de Novembro de 1956] o “Prisma” passa a chamar-se “página literária”. Percebe-se porquê. A grande maioria dos seus conteúdos seria composta de poesia, poemas de jovens e de consagrados lado a lado, oriundos dos vários quadrantes poéticos do Algarve, do país, de Espanha, do Brasil, de África. Nas suas páginas publicaram 45 poetas (melhor 44, se considerarmos as quadras de Casimiro, assinadas com pseudónimo) muitos deles traduzidos, do espanhol e do inglês, por Casimiro de Brito. De entre os nomes hoje mais conhecidos poderemos referir, para além do organizador da página, Ramos Rosa, Vicente Campinas, Emiliano da Costa, Afonso Cautela, Fernando Midões, Eduardo Olímpio, Maria Rosa Colaço e António Cabral. Repetiram poemas, para além do próprio Casimiro, Vicente Campinas, José Guerreiro, Costa Mendes, Orlando Neves, Carlos Alberto Jordão, Lita Fernandes Ferreira, José Carlos Gonzalez, Eduardo Olímpio e Rui Mendes.

Com o poeta Eduardo Olímpio, natural de Santiago do Cacém, Casimiro de Brito criou e divulgou os Cadernos de Poesia «Encontro», vendidos pelo “Prisma” a 4 escudos cada. Na área da criação e divulgação poética o “Prisma de Cristal” dá conta das diversas iniciativas editoriais de Casimiro, designadamente do «Caderno Zero» (como redactor), do «Convívio» (como director) e dos mais célebres «Cadernos do Meio-Dia», dirigidos por António Ramos Rosa, na altura em que Casimiro de Brito já habitava na Rua do Bocage, em Faro.

Foi nas páginas do “Prisma de Cristal” que Casimiro de Brito publicou os seus primeiros poemas de juventude, tendo escrito ainda sobre arte, cultura, poesia, cinema, filosofia. Foi nessas páginas que dissertou sobre os movimentos poéticos, que lançou o seu Movimento Prisma, que apontou o seu gume crítico ao conservadorismo cultural. Foi nelas que formou e treinou o seu espírito progressista, a sua veia crítica, a sua busca de liberdade.

O “Prisma de Cristal” é, ainda, o suporte estético daquilo a que Casimiro chamou o Movimento Prisma, espaço de criação, fomento e organização de uma jovem poesia que nascia nos anos 50, fora dos movimentos conhecidos da poesia contemporânea. A sua importância, no Algarve, está ainda por apurar. A esse movimento Casimiro de Brito refere-se várias vezes no “Prisma de Cristal”, abordando temas fora da poesia, como a estética, a filosofia ou a cultura, exercendo crítica literária e discorrendo sobre muitos outros temas. No corpo de colaboradores do “Prisma”, informalmente organizados no Movimento, destaque para o poeta Gastão Cruz, natural de Faro, que publicou o seu primeiro texto na página com apenas 16 anos. Trata-se de uma crítica literária ao livro “Dispersão” de Mário de Sá-Carneiro, inserta no “Prisma” nº 23 [16 de março de 1958].

Durante o período de publicação o “Prisma” contou com um total de 18 colaboradores, de entre os quais saliento Manjua Leal, José Guerreiro, Vicente Campinas, Maria Rosa Colaço, Afonso Cautela, Francisco de Sousa Inês, João de Leal, Eduardo Olímpio, Carlos Porto e o artista plástico Manuel Cavaco Guerreiro, autor dos linóleos publicados e do frontispício da página.

Para além de organizador Casimiro de Brito foi um participante compulsivo em várias áreas da cultura e da literatura. No campo da poesia, participou com 11 poemas em nove dos 26 números do “Prisma”. Os seus primeiros poemas publicados surgem no nº 3 [16 de Novembro de 1956], com o título “Diário dum jovem poeta” e assinados como Casimiro de Brito.

A produção poética de Casimiro de Brito não se limita às páginas do “Prisma”. Publicou alguns poemas fora da página literária, de que é exemplo o poema “Desprendimento”, que surge na primeira página de «A Voz de Loulé», de 20 de Janeiro de 1957, na qual figura o “Prisma de Cristal” nº 7.

Em artigo assinado pelo colaborador do “Prisma” João de Leal, de Faro, ficamos também a saber que Casimiro de Brito publica o seu primeiro livro de poemas, em edição de autor, impresso na Tipografia Cácima. Na nota publicada em «A Voz de Loulé», de 19 de Janeiro de 1958, Leal refere o livro “Poemas da Solidão Imperfeita”, editado em Faro em 1958, que hoje figura como a primeira obra do autor.

O que é curioso notar é que Casimiro de Brito não cedeu à tentação (eventualmente ingénua e simplista) de utilizar, no seu primeiro livro publicado, os poemas que havia editado no “Prisma de Cristal”. O que quer dizer que todos os poemas do autor insertos em «A Voz de Loulé» nunca foram publicados em livro, iniciativa que me parece justa e interessante levar a cabo por este jornal, com a concordância do autor.

Devo referir que a experiência do “Prisma de Cristal” em «A Voz de Loulé» é completa e inexplicavelmente ignorada por Mário Lyster Franco na sua conhecida obra “Algarviana”, de 1982 [ver páginas 380-385]. Nesta obra Lyster Franco refere a colaboração “permanente ou eventual” de Casimiro de Brito nos semanários regionais «Jornal do Algarve», «Folha de Domingo» e «Correio do Sul», nos quais, segundo ele, Casimiro “talvez se tenha estreado”.

No passado mês de Outubro passaram 50 anos do aparecimento do “Prisma de Cristal”, página literária de «A Voz de Loulé», organizada pelo poeta louletano Casimiro de Brito. Tempo para encontrar formas de comemorar condignamente o evento. Casimiro de Brito merece-o. E Loulé também.


Nota: este artigo é um resumo de um pequeno ensaio que em breve sairá na revista Al-‘Uliã, nº 11, do Museu Municipal de Loulé.

Mensagens populares deste blogue

Alte e o seu dia de Maio (artigo no jornal «Ecos da Serra»)

3 Poemas publicados

Crónicas no jornal «barlavento»