A DEMOCRACIA, O FUTEBOL E O “APITO DOURADO”

Duas razões me levam a escrever esta crónica. A primeira é o facto de ter escrito aqui, em crónica de 15 de Março passado, um texto sobre “a política e o futebol”; a segunda, como é compreensível, pelo conjunto de factos que hoje dominam a actualidade mediática e designado como “apito dourado”.
Posto isto, recordo que na referida crónica salientava o peso desmedido do futebol na portugalidade contemporânea e dizia: “no ano de 2004, o futebol dominará a política nacional. Em contrapartida e como moeda de troca social, a política tem dominado o futebol. Há muitas épocas – para usar a terminologia do futebol – em que o dirigismo no futebol é tirocínio obrigatório para quem quer ascender a cargos políticos de referência”. Ora esta promiscuidade tem destas coisas. Quando cai o Carmo, cai também a Trindade. Neste caso, cai o futebol e com ele se arrasta a política que se faz, assim, de compadrios e de uma rede de dependências insolúveis. Voltando à crónica de 15/3, dizia eu que “precisamente, este caminho constrói-se a partir de uma rede de favores e benevolências minúsculas e invisíveis que estruturam a fidelidade de apaniguados, empregados, funcionários e autoridades. Só assim é possível, a quem detém o poder, mobilizar em sua defesa todos aqueles que dependem dessa rede diáfana da solidariedade corrupta”. Como se tem visto, não faltam manifestações e choradinhos em torno dos líderes populistas, quer sejam autarcas, políticos ou gente do futebol.
Na verdade, que longe está este futebol do futebol do meu tempo. Quando jogava futebol nos juvenis do Silves Futebol Clube, lembro-me de calçar botas já usadas por outros, antes de mim, tiritar de frio nos bancos ou nos treinos, sem roupa adequada, tomar banhos frios no fim gélido das tardes. Tudo isto quando o futebol lançava solidariedades e socializações a preceito, passava os testemunhos educativos, do esforço, da cooperação e da amizade. Quando o prémio de jogo era apenas um galão e uma sandes mista. Mas, entretanto estudava, lia Kafka e Gorky, convivia e descobria mundos, outros. Durante algum tempo ainda vi futebol, até que as marcas, os prémios, os ordenados chorudos, lá entraram. Quando o futebol se transforma numa arte manietada por construtores e políticos desconhecidos, deixei de o olhar.
Diz o sociólogo Augusto Santos Silva, no «Público» de 24 de Abril que “o futebol não tem lepra [e que] o seu potencial simbólico e económico não pode ser esquecido”; mas, de facto, estas afirmações dão uma no cravo e outra na ferradura. É evidente que o sentido de escape psicológico do futebol, tem explicado muitas das afirmações em sua defesa, mas não podemos deixar de ver, e não podemos esquecer, que a sua gestão é pautada pela busca permanente do seu trampolim, na ascensão social de gente ambiciosa. Gente que vem, como disse antes, “do anonimato para a associação, desta para o clube de futebol da terra e deste para o cargo político”. E foi este consenso, doentio, em torno de um desiderato nacional, – que apenas interessava ao poder (instituído, como se pressupõe) – que tem permitido, como afirma José Manuel Fernandes, em Editorial do «Público» de 21 de Abril, que “ser dirigente desportivo era uma espécie de salvo-conduto, já que as polícias, a justiça e as investigações ficavam à porta dos clubes”.
Ora é isso mesmo que agora se desmorona. E o estado não sabe o que fazer. Em primeiro lugar o governo anda à toa, a meses da expansão milenar que representa o Euro 2004, mostrando um mundo caótico, corrupto, de compadrios e favores medievais. Por isso A. S. Silva apela a que se tire a limpo as ligações promíscuas entre política e futebol. E a jornalista Ana Sá Lopes, também no jornal «Público» de 24 de Abril, refere que “a suspeita permanente, não sendo investigada, torna-se ‘a verdade’”. O mesmo tinha eu dito. E quando estes acontecimentos se precipitaram, tendo sido arrolados 16 arguidos, verifiquei que tinha razão em ter escrito o que escrevi. A propósito, um amigo meu, da comunidade dos blogues, foi lesto e metafórico a concluir que se podia chamar ao texto “a crónica de uma detenção anunciada”, lembrando a célebre novela de Garcia Marquez. Eu respondi-lhe, dando o seu a seu dono, que já a actual Procuradora Adjunta, Maria José Morgado tinha expressado essa motivação de investigar as relações entre a política e o futebol. Na altura, dessa entrevista à «Pública» de Setembro de 2002, muitos ficaram escandalizados com este descaramento, ou esta coragem, como queiram. Lembram-se, com certeza de Valentim Loureiro a esbracejar, pedindo provas. Aí têm, pois, as acusações, por enquanto, enquanto a procissão vai no adro. E enquanto a procissão vai no adro e as demissões de cargos se sucedem, resta saber que responsabilidades pessoais e políticas, os visados extraem disto. Da minha parte, se não o fizerem, fazem a prova provada de que ninguém aqui presta qualquer serviço público, mas apenas se servem dos cargos para exorbitar os poderes para os quais são eleitos pelos cidadãos. E são estes, somos nós, que de forma livre, mas consciente, deveremos agir, para que a cidadania seja participativa e a democracia dessa forme se reforce.

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Nota: A crónica referida neste texto e intitulada “A Política, o Futebol e a Violência”, pode ser lida neste jornal, no número de 15 de Março de 2004
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[publicado em A Voz de Loulé de 1 de Maio de 2004]

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