Simbologias no fogo

Um país de incêndios
Enquanto todo o país vive as alegrias da bola, desfilando bandeiras e batendo panelas e tachos, pequenas aldeias vivem as agruras, os temores e as lutas inglórias contra o fogo. Recentemente, enquanto o país assistia embasbacado aos golos da selecção portuguesa de futebol, alguns velhos e crianças, carregavam baldes de água, para refrescar as chamas que varriam a serra de Tavira, em Casa Queimada. Que raio de nome premonitório. Todos os anos é a mesma odisseia. Apesar de uma profusão legislativa, quase sempre incongruente, de campanhas de publicidade televisiva, de apelos ao reforço permanente de mais meios, o dilema continua. É claro, como a água que se gasta! O problema dos incêndios e dos fogos florestais, não parece estar nos meios, no reforço de homens, na prevenção e na vigilância. Na verdade este problema tem sido encarado como uma causa, mas não é. Ao contrário, ele é uma consequência. Consequência da desertificação humana, do abandono da agricultura tradicional, do fim do pastoreio. O abandono da floresta pelo homem como consequência do fim dos sistemas tradicionais de economia agro-pastoril. Há muito tempo, Brito de Carvalho, antigo secretário de estado da agricultura e antigo professor da Universidade do Algarve, tinha afirmado que a floresta sem o homem não é nada, não sobrevive. Concordamos com ele! As serras em vez de trigo e centeio têm mato (esteva, giesta, rosmaninho), magnífico combustível para arder. Os pastos secam, porque não há ovelhas e cabras que progressivamente as estiolem e comam. As ribeiras enchem-se de restos de desbaste, resíduos e lixo, à espera das enxurradas e dos fogos. Não há caminhos, aceiros e azinhagas de uso permanente, os que se abrem são puramente artificiais.
Não propugnamos o regresso ao neolítico, mas pensamos que a macrocefalia das cidades, tem roubado a presença do homem no campo, nos barrocais e nas serras, que com melhores condições poderiam cultivar a terra, pastorear rebanhos em regime de silvicultura, dedicar-se à produção agro-alimentar. Tudo na companhia de outros recursos culturais, educativos, sociais, etc. Mas as comunidades camponesas estão, assim,condenadas ao abandono total e ao desaparecimento, no quadro de desenvolvimento actual. É a razão inversa da progressão da PAC – Política Agrícola Comum! À medida que esta se instala, o campo desaparece. Nele restarão apenas matos para o fogo consumir!
Surrealizar, por aí...
Segunda-feira, já noite dentro, continuo a leitura do caderno principal do «Expresso». Últimas páginas, dou por mim a ler:
“ Mobilizámos os militares (...); articulámos com a Polícia Judiciária (...); aumentámos o efectivo da guarda florestal (...); aumentámos o número de equipas de sapadores florestais (...); Lançámos um ambicioso conjunto de obras de silvicultura preventiva (...); aprovámos e fizemos publicar o Novo Sistema Nacional de Prevenção e Protecção das Florestas contra Incêndios. Perante este quadro de acção – que nem sequer é exaustivo – dizer (como alguns insistem) que nada está a ser feito ou afirmar que faltam medidas adequadas de prevenção para preparar o Verão de 2004 é, no mínimo, ridículo. Mas não é de algo risível que estamos a falar. Estaremos neste caso a falar de uma campanha de desestabilização e de descrédito impensado ou premeditado que apenas permite uma certeza: parece que algumas pessoas ficarão tristes e desapontadas se este ano os fogos florestais não tiverem, de novo, os contornos de calamidade”.
Sinto o calor abrasador do vento norte, que faz chegar as poeiras e os fumos quentes da serra do Caldeirão, deixo o jornal, oiço as sirenes dos bombeiros ao longe, junto de Silves, de Monchique, de Alcoutim, de Castro Marim, das Gambelas, de toda a serra de Loulé. Todo o Algarve a arder! Volto ao artigo, olho o título “Um ano de políticas contra os fogos florestais”, da autoria de um tal de João M.A. Soares, Ex-secretário de Estado das Florestas e percebo tudo, com um arrepio na espinha.

[Coluna de 15 agosto 2004]


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