A descolonização das mentes

Não se escreve sobre a guerra como se escreve sobre a paz. Sobretudo se quem escreve é protagonista real da ficção que se difere no tempo. E essa decalage no tempo é uma das características do tempo da escrita de guerra. Porque o actor da guerra real não se pode colar ao personagem reflexivo e distante, a escrita da guerra é um “exercício de reflexividade” como refere Giddens. O tempo amadurece a razão e antes dela, promove a emoção. Uma emoção de escrita que é capaz de solicitar os instrumentos da memória distante, em perfeita integração com os suportes das razões actuais.
Porque é que há pulsão de escrita sobre a guerra?
Trata-se de uma forma de ajustar contas com o catálogo de valores do ser humano? Uma forma axiológica de contrariar os actos desviantes? Ou uma simples forma de exorcizar o mal? Provavelmente tudo isso e muito mais.
No momento actual assiste-se, em Portugal, a uma nova profusão de testemunhos da guerra colonial, escritos por diferentes vivências, e sob diversos pontos de vista. Jorge Freitas no Cartaz do “Expresso”, de 10 de Janeiro passado, referindo-se à ausência de obras sobre esta temática, fala de uma estranha reserva. Reserva ou não, o facto é que não são de agora, os escritos sobre a guerra colonial. Relembro a propósito – apenas pelo facto de as ter lido na altura, - as cartas de Bação Leal e as novelas de Manuel Geraldo «Sangue negro, sangue branco e o suor da terra», de 1973 e de Fernando Assis Pacheco «Walt», de 1979 (mas escrito entre 1973 e 1978). Do primeiro (pp.13-4) respiguemos:
Eu, pensando bem, nem sei porque estou aqui!- As conversas arrastavam-se, eram noites perdidas, madrugadas de insónia, em que cada um tentava enganar-se, ludibriar os outros, esquecer, até que uma nova manhã despontasse.
E depois eram os dias, e as longas caminhadas, e as mortes, as minas e as rajadas, sangue negro, sangue branco, e o cheiro da guerra e dos corpos, da pólvora e da terra gretada.
- Podia ter partido, feito como muitos outros. França ou Alemanha! “Pirar-me”, para mim tanto me fazia. Mas fui atrasando, esperando, e acabei por ser caçado.
Do segundo ( p.9) ouçamos:
Esta besta barco chama-se Apocalypse, é branca e tem duas chaminés providas de sendas riscas azul-ferrete. Vejo claramente visto que já não é nova, a besta, mas para irmos aonde vamos qualquer traineira servia, qualquer caca inventada à pressão pelos altos poderes sereníssimos, desde que flutuasse.
Atrás de mim, e de que partem vozes, o pelotão alinhado. Soma trinta e cinco gatilhos (...). Ir assim de charola é a cabronada mais miserável que se pode fazer em Abril de 1963.

Estas palavras são marcas, incontornáveis, de uma visão crítica da guerra colonial, assumidas por quem as viveu, da mesma forma.
Outras vozes, outras visões, e desta vez uma quase inédita visão poética podemos encontrá-la no trabalho de José Neves (pseudónimo de Adolfo Pinto Contreiras), intitulado «Esquadrão 149. A guerra e os dias», dado à estampa em edição de autor e apresentado a público a 29 de Novembro de 2003, nos Gorjões, Sta. Bárbara de Nexe. O autor confessa-se longe dos mediatismos e dos lobbies da publicação, e essa veia é clara, tanto na assunção pessoal da obra – voltada para antigos companheiros da guerra, ou ainda como forma de cumprir um desiderato de memória colectiva – como ainda na escolha da sua aldeia natal, para a apresentar – portanto na periferia dos poderes económicos e culturais. Uma prova, também, de que a guerra tem essa reciprocidade assimétrica, de que falava Lévi-Strauss, entre quem a manda e quem a faz.
Na verdade, esta obra, volumosa de 382 páginas, aproveita a poesia como mecanismo de produção narrativa, e faz jus à designação de prosa poética, porque livre de constrangimentos técnico-operativos da produção poética e assente no objectivo de efectuar um relato fidedigno da experiência de guerra. Escrita entre 1999 e 2003, 40 anos após os acontecimentos, é possível ao autor distanciar-se criticamente da guerra, percorrendo espaços de contenda militar, da solidariedade in extremis, da socialização intercultural, dos conflitos da emoção e da razão.
Comentando a placa de identificação dos militares:
Ó ironia triste do soldado/que vai prá guerra obrigado/a ser alvo de metralha./Antes de pôr os pés na batalha/já está medalhado/com uma sinistra medalha/prenúncio do seu consumo/abrupto, sua súbita despedida./Ó cínica, és dada em nossa vida/a título do nosso futuro póstumo (p.20).
E num acesso bocageano, dando conta do erotismo inter-étnico:
Entrámos os três na cubata/e perante a minha hesitação/ele pede à bela Conceição/que levantasse o pano-bata./Ó celestial visão, doce tontura/vê-la de costas, pano à cintura,/uma perna sobre o catre/outra apoiada no chão do pó./Ó humana escultural figura, ó/beleza de fazer inveja à arte,/de enlouquecer quem fixar-te/as belas pernas até ao buraco/no centro do soberbo mataco.//Não resisti, fiquei como Priapo,/ela inclinou-se, gozámos o acto (pp. 193-4).
Numa altura em que toma conta da conjuntura actual, o domínio da discussão ideológica sobre a descolonização, vale a pena ler como se processou a escrita da história e como se vive a descolonização das mentes, sobre a guerra.

Notas:
(1) Freitas, Jorge (2004) “Livros de Guerra” in Expresso – Cartaz, pp. 12-3.
(2) Geraldo, Manuel (1973) Sangue negro, sangue branco e o suor da terra. Lisboa: Edições Plexo.
(3) Pacheco, Fernando Assis (1979) Walt ou o frio e o quente. Lisboa: Livraria Bertrand.
(4) Neves, José (2003) Esquadrão 149. A guerra e os dias. Gorjões: Edição de autor.
Este livro pode ser solicitado a Adolfo Contreiras: 289 992 546 ou 966 298 473.

[coluna de 15 Fev. 04]


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