José Carlos Fernandes a «A Voz de Loulé»
SEM A MÚSICA CLÁSSICA E O JAZZ, VIVERIA NUM MUNDO COM MENOS UMA DIMENSÃO
Esta entrevista já estava pensada há muito. José Carlos Fernandes é daqueles autores de quem não dispensamos leituras: pela verve da sua refinada crítica social; por uma temática ilustrativa universalista; pela cultura musical e literária que jorra das suas micro-histórias. No ano passado deu-nos a honra de colaborar no suplemento cultural [a cultura] que mantivemos neste jornal, legando-nos alguns desenhos cujos traços eram mensagens vivas do seu pensamento social enquanto desenhador. A ele dediquei uma das minhas colunas. O José Batista - que comigo partilha esta entrevista - conhece-o também há muito, e com ele passou muitas horas à volta das histórias da banda desenhada (BD).
Por tudo isto preparámos a entrevista com um dos autores mais importantes da BD portuguesa de sempre, numa altura em que José Carlos Fernandes acaba de lançar, no passado dia 23 de Abril, na Biblioteca Municipal de Loulé, o seu mais recente livro de banda desenhada «A Última Obra-Prima de Aaron Slobodj», editado pela Devir. Esta obra sui generis e o estranho nome do autor da obra-prima são o pretexto para falarmos com José Carlos Fernandes. A entrevista começa, exactamente, por aí.
«A Voz de Loulé» (VL): Quem é Aaron Slobodj?
Aaron Slobodj foi um dos maiores artistas plásticos do século XX. Mas como se empenhou em produzir obras efémeras e voláteis, não granjeou grande reconhecimento, pelo menos junto do grande público. Além disso, foi uma figura rodeada por uma aura enigmática, a que não serão estranhas algumas imposturas e mistificações em que se envolveu.
VL: As personagens que crias são o resultado das tuas leituras, mais do que das tuas vivências?
Uma mistura de ambas as coisas, com predominância para as leituras.
VL: Lemos as tuas histórias como literatura impregnada de música? Concordas?
Não estou muito certo. Gostaria que assim fosse, que a música conseguisse estar presente na BD, apesar de serem expressões artísticas muito diferentes. A BD é a minha forma de expressão, mas a música é para mim um foco de interesse tão forte como a BD. Fico satisfeito que alguns leitores sintam a sua presença nos meus livros.
VL: Dizes que lês mais para obter prazer do que para te inspirares na criação. Com a música que ouves, presumimos que se passa o mesmo?
Sem dúvida. Na verdade a maior parte da minha discoteca é constituída por música clássica e esta pouco ou nada me inspira na criação de histórias. Os contributos mais directos para a minha BD vieram, até agora, das margens do pop-rock contemporâneo: Laurie Anderson, Tom Waits. Mas de qualquer modo, quando ouço música não ando à procura de ideias, acontece é que tropeço nelas sem querer. Por exemplo, em "O detector de mensagens satânicas", no 1º volume de "A Pior Banda do Mundo", há uma frase que saiu do refrão dos Modest Mouse, uma obscura banda pop americana.
VL: Borges é recorrente nas tuas histórias disfarçado de “Leopoldo Nazca”? Tens muito autores preferidos na literatura, que te entram desenho adentro?
No caso de Borges, são dois gémeos, Leopoldo e Isidoro Nazca – é uma brincadeira com o conto de Borges "O outro". Há também um certo Simeon Lichtenstein que deve algo a Kafka. Há muitas influências literárias na minha BD, mas raramente assumem o corpo e o rosto de uma personagem.
VL: No campo da banda desenhada propriamente dita, que autores preferes?
Dave McKean/Neil Gaiman, Ben Katchor, Chris Ware, George Pratt, Jon J. Muth, Alberto Breccia, Hugo Pratt, Miguelanxo Prado, Loustal/Paringaux, François Bourgeon, François Boucq, François Schuiten/Benoît Peeters, Hermann, Steffano Ricci, Bill Watterson, Winsor McCay, Will Eisner, Seth, Tardi, Bilal. Entre os portugueses, Miguel Rocha, Filipe Abranches, João Fazenda.
VL: Parece haver um fosso na criação de banda desenhada (BD) portuguesa, entre o período de autores e ilustradores dos tempos do “Mosquito” e outras revistas e o período actual. Como te sentes em relação à velha escola de BD em Portugal?
Tenho relações de amizade com alguns deles, nomeadamente com José Garcês e, sobretudo, com o nosso conterrâneo José Baptista – ao qual devo, aliás, preciosos conselhos de desenho. Mas, como criadores, pertencemos a mundos separados. Eles trabalharam numa altura em que esta era entendida (pelos editores, pelos leitores, pela sociedade) numa perspectiva muito fechada, de estrito entretenimento juvenil. Fizeram aquilo que se esperava deles, nesse contexto. Entretanto, nos últimos 20-30 anos, as fronteiras da BD dilataram-se incrivelmente, em termos de temática, grafismos, formas narrativas e é inevitável que tenha surgido esse fosso, que é alargado por quase não existirem representantes da geração intermédia entre quem anda agora nos 30-40 anos e os da geração com 60-70.
VL: É habitual referir-se a tua entrada tardia na BD (em 1989, com 25 anos). No entanto és considerado o mais prolífico autor de BD (quase 2000 páginas publicadas) em Portugal. Qual é o segredo?
Não creio que haja um segredo. Tenho muitas histórias para contar, sou persistente e imponho a mim mesmo uma organização prussiana. Manter as coisas organizadas dá trabalho a curto prazo, mas poupa imenso trabalho a médio e longo prazo.
VL: Pelas nossas contas, já acumulas três prémios no Festival da Amadora, três prémios Rafael Bordalo Pinheiro, dois primeiros prémios em concursos de BD, um prémio de humor e um terceiro lugar de edição internacional de BD em Espanha. Qual é o significado de tudo isto?
Sem querer parecer snob ou falsamente modesto, penso que os prémios nacionais de BD devem ser colocados em perspectiva: há anos em que saem 5 ou 6 livros de autores portugueses. Como publico muito e a maior parte dos meus colegas tem um ritmo bissexto, acontece que, por vezes, metade dos livros a concurso são meus. Os prémios e as críticas a nível internacional já têm outro significado – fiquei particularmente agradado quando o 1º volume de "A Pior Banda do Mundo" ficou em 3º lugar no top dos melhores álbuns de BD de 2002 a nível internacional de "La Guia del Comic", ou quando o 3º volume foi eleito como um dos 5 melhores álbuns de BD dos últimos 5 anos, a nível mundial, pela revista espanhola "Nemo".
VL: Publicas, semanalmente, ilustração a cor no «Diário de Notícias». É uma vertente que te interessa?
Muito. Já não falando na questão financeira, pois a ilustração para imprensa é mais bem paga do que a edição de livros de BD, se atendermos ao tempo investido em cada uma. É um desafio constante, ser confrontado com textos sobre os mais diversos assuntos e ter que conceber uma ilustração que transmita a essência desse texto, sem ser redundante. E com muito pouco tempo para pensar, pois recebo o texto na véspera ou no próprio dia em que tenho de entregar a ilustração. Há textos que me sugerem de imediato imagens (às vezes envio mais do que uma proposta), mas há outros que são muito abstractos e que me fazem passar horas a dar tratos à cachimónia. Agora comecei também a colaborar na revista mensal "Atlântico".
VL: Um dos teus gostos e prazeres preferenciais é a música. Para além de melómano preocupa-te a divulgação da música? Por exemplo, realizando audições de divulgação como fizeste na Biblioteca de Loulé?
É uma pena que as pessoas vivam alheias à existência de mundos tão ricos e fascinantes como os da música clássica e do jazz. É como viver num mundo com menos uma dimensão. Por ser complexa e por pertencer a um universo que pouco tem a ver com a esfera de convenções, representações e preocupações da sociedade actual, a música "erudita" está confinada a um limbo. Mas se se fizer um investimento de tempo e dedicação, oferece-nos recompensas sem preço. A música dá-nos de volta aquilo que nela investirmos – se não lhe prestarmos realmente atenção nunca passará de papel de parede sonoro; se a escutarmos atentamente pode mudar-nos a vida ou, pelo menos, a forma de a encararmos. No domínio da música clássica e do jazz sempre fui auto-didacta, o meu motor é a minha curiosidade. Mas a descoberta de um novo compositor, de uma nova obra, de uma nova intepretação, só faz para mim sentido se tiver alguém com quem a partilhar – daí o meu interesse na divulgação. Infelizmente, o público das sessões na Biblioteca foi muito escasso, embora dedicado e interessado. De qualquer modo gostaria de repetir a experiência, pois o feedback foi positivo.
VL: Uma das representações sobre o teu perfil é que vives isolado no meio rural, mas que conheces como ninguém os meandros do mundo urbano e cosmopolita. O que dizes a isto?
Gosto de viver no meio rural porque gosto de tranquilidade e porque as cidades se estão a tornar em lugares desagradáveis para se viver. Para não ir mais longe, Loulé já exibe os inconvenientes da "modernidade suburbana" sem deixar de ser profundamente provinciana e tacanha. Feitas as contas, não perdi nada e ganhei muito ao trocar Loulé pela serra. Por outro lado, sou um pouco simplório no que diz respeito ao "relacionamento social" e não tenho jeito nem apetência para viver num meio cosmopolita. Conheço muito mal os "meandros do mundo urbano e cosmopolita", mas mantenho-me a par, através da Internet e dos jornais e revistas, do que se vai fazendo na área da literatura, BD, ilustração, design, música clássica e jazz.
VL: Para finalizar, gostariamos de te perguntar como vês o panorama da criação e da leitura de BD em Portugal?
Estão ambas em expansão, a criação e a leitura. A BD está a ganhar leitores dos estratos mais cultos, que tendo dos "livros aos quadradinhos" uma ideia estereotipada, não sabiam que a BD pode abordar temas mais complexos e profundos do que histórias de piratas para rapazes ou super-heróis apertados em fatos de lycra ao sopapo uns com os outros. É frequente, quer em Portugal quer em Espanha, falar com leitores que me dizem que não são leitores habituais de BD.
Por outro lado, há em Portugal criadores muito interessantes, mas que parecem não ser movidos por nenhum impulso interno e só trabalham quando lhes acenam com remunerações atraentes – e isso, como se sabe, é quase impossível no nosso exíguo panorama editorial, onde um livro de sucesso de um autor de BD português vende 2000 exemplares. Face a estas limitações, a internacionalização é imprescindível à sobrevivência.
Mas os workshops que tenho realizado em escolas do concelho deixam-me preocupado quanto ao futuro da literatura e da BD em Portugal (ou talvez devesse dizer "o futuro de Portugal"), pois encontro turmas inteiras que nunca leram um livro, para além daqueles a que a escola os "condena" – nem sequer lêem BD, que dantes era vista como a sub-literatura de que os jovens deviam ser afastados a todo o custo. E no entanto, nunca os livros foram tão acessíveis como hoje.
VL: Podemos saber qual a tua próxima obra?
Estou a organizar ideias para realizar os volumes 7, 8 e 9 de "La Peor Banda del Mundo" (o nº6 está pronto desde 2003), que terão por título "O Teatro Vegetal Zucchini", "A Sede Provisória do Governo Mundial" e "O Atlas Ilustrado da Ilusão Humana".
Além disso tenho estado a trabalhar em encomendas provenientes de Espanha. Estou a terminar uma BD sobre Emilio Salgari, que vai integrar um álbum colectivo a editar pela próxima Semana Negra de Gijón. Escrevi um guião para uma BD envolvendo Cervantes, Don Quixote e Sevilha, que será desenhado por Juan Manuel Fontenla e será publicado, em formato gigante, numa série intitulada "Osinvito: Comics de la Provincia de Sevilla", que é da iniciativa da Região de Turismo de Sevilha. Nessa mesma série, será apresentado, "Los toros de Tartessos", com guião meu e desenhos de Miguel Rocha.
Em colaboração com Miguel Rocha, Roberto Gomes (que foi um dos alunos do workshop de BD que dei na Biblioteca de Loulé em 2003) e eventualmente outros desenhadores, estamos a preparar uma série de histórias curtas em vários volumes (escrevi 115 guiões, agora estou à espera que vão sendo desenhados). Esta série tem o título provisório de "Blackbox Stories"; ainda não há data de saída para o primeiro volume.
Lá para o fim do ano sairá (em Portugal e Espanha) o 5º volume de "A Pior Banda do Mundo", "O depósito de refugos postais". É possível que pela mesma altura saia, com o "Correio da Manhã", na colecção "Clássicos da BD", um volume de 200 páginas que faz uma secção transversal da minha BD e inclui histórias inéditas ou esgotadas há muito.
Entrevista de Helder F. Raimundo e José Batista (Jobat).
[a publicar em «A Voz de Loulé» de 1 maio]