Entrevista a Daniel Vieira sobre o Plano de Revitalização de Alte

“ESTOU DESILUDIDO COM O PLANO DE REVITALIZAÇÃO DE ALTE”: Daniel Vieira em entrevista a «A Voz de Loulé»

Na aldeia de Alte, no concelho de Loulé, decorre o Plano de Revitalização de Alte, promovido pela Câmara Municipal de Loulé. Depois do “Concurso da aldeia mais portuguesa de Portugal”, pode vir a ser o plano de alteração estrutural mais importante da aldeia, desde então. Para perceber o que está a acontecer, «A Voz de Loulé» foi conversar com Daniel Vieira, lídimo habitante da aldeia, professor e artista plástico, um homem permanentemente preocupado com a imagem arquitectural da sua terra. E sobretudo com a face cultural exógena que ela transmite a quem a visita.

«A Voz de Loulé»: A propósito do Plano de Revitalização de Alte, os jornais falam “numa revolução na aldeia de Alte”? O que pensas desta expressão?
Eu penso que seria uma revolução se o Plano fosse executado como tínhamos pensado. Quando apareceu a possibilidade de utilizar os dinheiros que o engenheiro João Cravinho referiu que estariam à disposição reunimos, no meu atelier, eu, a dra. Irene Figueiredo e o presidente da Junta da altura, Rui de Sousa, e fizémos um programa durante várias noites. Pensámos que isto iria mudar. Pensámos em comprar várias casas para fazer actividades culturais. Uma das casas, que tinha pertencido ao republicano Isidoro Rodrigues Pontes, onde decorreu a cultura do princípio do século (música, teatro, tertúlias) poderia servir para museu, um museu do pós-república, com imagens iconográficas da evolução de Alte até aos nossos dias. Também poderia haver um museu da música tradicional. Alte tem sido sempre terra musical e de teatro. Desde os princípios do século passado que Alte teve teatro, música, filarmónica. Como diz o meu amigo Natalino, o teatro em Alte tem sido sempre sincopado, quer dizer, tem tido altos e baixos, dado que recebeu influências dispersas de estudantes da terra, que vinham de Coimbra (com referências do teatro musicado) e de Lisboa (do teatro de revista). A música sempre foi uma constante. Tivemos uma filarmónica e na mesma casa de Isidoro Pontes se ensaiaram grupos de música com elementos femininos. O meu pai, quando veio de Lisboa, nos anos 30, criou o Grupo de Amadores de Música Altense.

«A Voz de Loulé»: E pretendiam adquirir outras casas?
Sim. Outra das casas era a casa do morgado, a qual serviria, na parte antiga, para falar do passado de Alte até à queda da monarquia: arqueologia, história. E como o senhor conde de Alte e Marim, tinha oferecido a sua biblioteca e alguns objectos de uso pessoal, poder-se-ia construir uma biblioteca integrando o espólio do poeta Cândido Guerreiro.
Outro objectivo seria recuperar casas degradadas para alugar a pessoas que quisessem vir para cá, porque esta terra tem falta de gente. Isso é que seria uma revolução.
Eu sinto-me quase defraudado. Não posso falar mal do que estão a fazer mas não é bem o que tínhamos pensado. Este plano andou a servir de propaganda política, da Câmara e da Junta, da altura, durante muito tempo. Eu e a Irene [refere-se à dra. Irene Figueiredo] até fizémos um escrito, um dossier, com fotos e tudo, para entregar à Câmara Municipal de Loulé, e a Junta de Freguesia de Alte ficou com uma cópia. Mas a Câmara perdeu o dossier que foi entregue directamente ao senhor presidente da altura. O que é certo é que a Junta também perdeu, o que acho muito estranho. O que veio de lá, dos técnicos da Câmara, não teve muito a ver com o que tínhamos proposto.
Revolução cultural é feita a partir das pessoas. Revolução urbanística é o que se está a passar e não tem nada a ver connosco. Mas as pessoas da terra não dizem nada, põem-me a mim nos cornos do touro.

«A Voz de Loulé»: Como tem sido habitual, o Plano foi debatido e assumido pela população local. Ou não?
Sim, o Plano foi discutido. As associações de Alte discutiram o plano. A Câmara Municipal de Loulé veio cá para discutir, mostravam à gente o que queriam fazer. Mas não era nada do projecto inicial. A Câmara constituiu cá um gabinete, mas queríamos a Isabel Raposo [arquitecta, autora de estudos sobre Alte e do livro «Alte, na Roda do Tempo»] mas não sei porque não foi convidada pela Câmara. Veio para cá o arquitecto Luís Guerreiro. Eu levei-o aos locais dos projectos. Na altura confiei, mas acabei por me desiludir, ao verificar as obras que projectou. Reconheço o valor arquitectónico da sua obra, mas não a considero apropriada e integrada na minha aldeia.
Mas eu tenho a certeza absoluta que não foi o projecto que se está a concretizar que se aprovou. Por exemplo, sobre a casa do morgado, onde se está a instalar a biblioteca- museu condes de Alte, não era nada daquilo que pensávamos. O arquitecto tentou integrá-la no contexto da aldeia mas não conseguiu. Não a devia ter alterado tanto, dado que era uma casa centenária. Um dia encontrei o padre Marim e vi que ele estava triste e compreendi a tristeza do homem e disse-lhe: senhor prior não está sózinho. Estava descontente com o que tinham feito com a casa do seus antepassados. A integração da casa não está bem, olha-se e a casa parece um “ferrero rocher” (aquelas caixas de plástico para chocolates), porque tem vidros a todo o comprimento a fingirem de platibanda e um telhado de aço, que pode ser das técnicas mais modernas mas não está bem, porque a casa ficou muito transformada. A comissão local deveria reunir e falar sobre aquela construção. A chaminé da casa foi capada. Parece que se quis preservar a chaminé mas o que se fez foi pôr-lhe um preservativo de vidro em cima. Era melhor deixá-la como estava ou então que fosse retirada para ficar como monumento. Outro aspecto é o do pátio que foi transformado numa varanda, pintada com tinta vermelha, em vez de ser ladrilhado, como é hábito no local. Repare-se, nós vamos ao Museu de Arte Antiga, em Lisboa, por exemplo, e podemos passear por pátios com árvores e recantos para ler e este museu não tem nada disso. Achei piada como se gasta o dinheiro do país: tiraram terras, voltaram a pôr terras e só gastaram dinheiro. Podiam ter feito uma cave que era mais útil, para depósito de materiais, mas o arquitecto disse-me que a cave ficava muito cara. Ora, o dinheiro daqueles execráveis vidros e do movimento de terras daria, concerteza, para fazer a cave.

«A Voz de Loulé»: Mas a aldeia tem que se transformar, não concordas?
Numa aldeia cultural como Alte, com um passado cultural e tradicional, não quer dizer que queremos o saudosismo ou viver na idade média, mas o chão da biblioteca porque é que é pintado de vermelho, ou de branco pintado com risca vermelha? O chão podia ter solos antigos, para mostrar às pessoas vários tipos de tijoleira, como fizémos na Junta de Freguesia. Aquela casa tanto pode ser em Almancil, como na China. Em Almancil ficava bem, porque é uma terra do litoral e de construções de traça moderna. Se Alte é uma terra tradicional, o que é que o turista vem cá fazer? É enganado. Eu não sou adepto dos palheiros, mas porque é que não se fez um telhado? Eu não concordo que se tivesse tirado o telhado. No outro dia, no Minho, vi uma casa bestialmente integrada com os telhados interessantes, com clarabóias. Esta malta nova, agora, copia tudo dos livros, não sabendo integrar as obras nos sítios devidos. Será isso que chamam a arquitectura minimalista? Querem deixar uma marca mas era bom pensar que marcas se devem deixar. Siza Vieira, ao recuperar o Chiado, adaptou o seu projecto ao local. Os arquitectos fazem obras modernas mas integradas. Eu nunca irei pôr os pés naquela biblioteca para ler, porque a casa é “fria”, parece um hospital.
Mas o meu povo de Alte é muito esquisito. Não gosta das obras que estão a ser feitas, critica nos cafés e não nos locais próprios.

«A Voz de Loulé»: Mas o Plano de Revitalização é feito de muitos outros projectos?
A Casa da Criança é do mesmo estilo, mas como está escondida não se vê tanto, não choca muito. Apesar disso, tem uma parede alta que parece uma prisão, e por causa desse muro não deixa ver a escola antiga. Alte não quer prisões!
Sobre o arranjo da ribeira, como nunca se fez nada na queda do Vigário, acho bem feito o que vão fazer: um café! Talvez se salve o cheiro, pois o Vigário em vez de ser uma paisagem bucólica é um esgoto de merda por causa da estação de tratamento.
A Escola Profissional ficará melhor situada, porque na actual os alunos quase não têm espaço para estar. O parque de jogos está bem colocado. O projecto do pavilhão multiusos ainda bem que caiu, pois ia estragar toda a vista de Alte. Esta gente ainda não percebeu que os turistas querem ver coisas diferentes. Se chegam cá e vêem o mesmo que em qualquer outro lado, nunca mais voltam, porque se sentem defraudados e enganados.
Quando estava em Lisboa trabalhei com um arquitecto - Walfred Sangaro de La Cavalaria -, um dos autores do livro «Arquitectura Popular em Portugal», que me perguntava qual era a minha terra. Quando lhe disse que era de Alte, ele disse-me que conhecia a minha aldeia como a palma das suas mãos, pois tinha trabalhado por cá. E então deu-me um conselho: “A arquitectura vai mudar muito! Por isso, defende a tua terra com unhas e dentes. Na verdade eu sou arquitecto, mas foi o povo, que construiu a tua aldeia, o seu verdadeiro arquitecto e por isso defende-a, aconselha a que as pessoas arranjem bons técnicos e arquitectos para a defender”. Nunca mais me esqueci disto. Pode-se modernizar, mas fazendo um bom casamento entre o antigo e o moderno.

«A Voz de Loulé»: Então e o teu velho sonho de um anfiteatro “à grega” na Fonte Grande?
O anfiteatro, se vai ser da mesma linha das outras coisas, também acho que não se devia gastar dinheiro ali. Eu sempre vi um anfiteatro simples, à “grega”. Podia-se passar a cultura mediterrânica, podia-se ter feito tudo aqui. Mas estou a ver a mesma linha de arquitectura. Agora, até queriam que os assentos fossem de pedra polida. Ora, eu sento-me lá há 60 anos e nunca me queixei do cú. Aquilo que era um sítio rústico, romântico... mas parece que o arquitecto tem razão, as coisas foram aprovadas por nós todos. Mas mediante o que se vê na Casa da Criança e na Biblioteca, ninguém sabe o que é que dali vai sair. Acho que as pessoas não ligam nada. Acho estranho que a comissão não faça nada, apesar de no outro dia não ter aprovado as pedras polidas. Se calhar vão estragar o monte. Eu e o Joaquim Mealha [ex-técnico de desenvolvimento da Câmara Municipal de Loulé] achámos que realmente o melhor sítio seria um bocado mais abaixo, a sul, em frente à ponte de pedra. Mas todos aprovaram aquele local, por causa do palco. Mas se vão fazer outro no chão, não destruiam a montanha. Infelizmente, já deitaram muitas árvores abaixo.
Eu hoje já estou arrependido, de quando apresentava os festivais de folclore e referia a beleza que poderia ter um anfiteatro na Fonte Grande, porque tenho receio do que ali poderá surgir. E lembro a palavra de um altense que disse, com desgosto, que o que há de mais bonito em Alte está a ser destruido.

«A Voz de Loulé»: Até que ponto é que o Plano muda a face tradicional da aldeia de Alte?
Este tipo de projectos são agressivos em relação ao resto da aldeia. O arquitecto Luís Guerreiro diz que há outros elementos agressivos e que ninguém falou. Na verdade, como disse atrás, um bom casamento é entre arquitecturas antigas e modernas. Mas esse casamento dá trabalho. O que está a acontecer em Alte abre um precedente e agora já ninguém pode proibir qualquer merda que se queira fazer na aldeia.
O problema da má arquitectura já existe há muito tempo. Tanto eu como a Isabel Raposo tínhamos a ideia de fazer deste plano uma escola de arquitectura, integrada com a realidade de Alte. Como é apanágio de Marvão ou de Monsaraz, ou de Óbidos. Para que é que a Isabel escreveu um «Manual de construção»? Fez um livro que não serviu para nada! A Câmara agora não terá moral para proibir qualquer outro projecto deste tipo. A Junta e a Câmara não têm o direito de proibir qualquer mamarracho que se faça aqui.

«A Voz de Loulé»: O que mais te preocupa nesta mudança estrutural na aldeia? Porque é disso que se trata, ou não?
Eu sou a favor das mudanças, o Camões dizia que todo o tempo é composto de mudanças, mas eu vejo que as mudanças que se estão a passar aqui podem estragar a imagem e a alma da minha aldeia. São capazes de afugentar os turistas. Mas eu pergunto: o que é que o turista vem ver aqui? Se eles se sentem aldrabados e enganados, porque não vêm ver nada do que lhes divulgam nos folhetos, nunca mais cá voltam. De contrário até seriam capazes de alugar uma casa para cá ficar. A haver mudança, seria uma mudança das pessoas, ver mais além do que alcança a nossa vista, como dizia o poeta Aleixo. Mudar as mentalidades deste povo, essa seria a verdadeira mudança.

(Entrevista de Helder Raimundo)

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