As árvores da Sacadura Cabral

Ainda há uns meses lá estavam, as árvores da Rua Sacadura Cabral. Eram como duas linhas de verde, acompanhando quem subia a rua, deixando passar as nesgas de sol sobre a calçada. Nunca soube que árvores eram. Talvez agora que elas já não estão lá, me interesse o seu nome, saber os anos que tinham, a dimensão da sua copa, a altura do seu tronco. Sei que uma delas tem pelo menos um metro de diâmetro na raíz. Sim, porque a raíz, por onde cresceu e que alimentava de seiva os ramos e as folhas, ainda permanece, depois de decepada, como a base de uma estátua a quem cortaram a cabeça e depois o tronco. Penso em quem teria plantado estas árvores. Quem teriam sido os homens ou mulheres que num dia qualquer de Março, talvez debaixo de chuva, se debruçaram na terra e colocaram - com o afecto paternal destes momentos - uma semente ou uma pequena planta, no seio da terra-mãe? Quem se teria preocupado em cuidar destas dezasseis árvores, alinhadas lado a lado e frente a frente, como um exército que protege os moradores, do vento, do sol e serve de poiso às aves que cantavam todas as tardes quando o sol se punha sobre as areias de Quarteira? Nunca saberemos! Tal como nunca saberemos porque desapareceram elas, cortadas uma a uma junto ao solo, perto do chão que há muito tinham abandonado, pois eram altivas, sobranceiras, olhando do alto, a calçada do chão, os transeuntes que passavam, as crianças que corriam no passeio ou os gatos que petiscavam cabeças de sardinha à sua sombra. Talvez os nossos olhos não pudessem ver os edifícios da rua, as casas térreas ou as nobres moradas, porque batiam sempre no verde das folhas? Hoje, ao colocarmos o nosso olhar, a perspectiva não tem obstáculos, vimos tudo no perímetro da rua, porque as árvores já lá não estão, mostrando-se mais vaidosas que as casas. Como se nos falassem que não são apenas bonsais de decoração em jardins de hipermercados, oliveiras colocadas em jarras, podadinhas e arranjadinhas como as plantas na mesa de uma sala de jantar qualquer. As árvores da Rua Sacadura Cabral eram livres, cresciam direitas ao céu, e diziam que a sua função era outra: proteger de sombra a calma do sol sobre os ombros de quem as plantou, dar abrigo e comida às aves que em troca cantavam para elas, todas as tardes, encher os pulmões de quem dorme nas casas ao seu redor. Por isso se colocaram ali e dali não despegaram, anos e anos, à chuva e ao sol, como elas só, sabem resistir. Apenas a mão do homem, o mesmo que lhes deu vida, pôde dar-lhes este fim tão imerecido.
Mas esta é uma moda que se pega, um contágio que se dissemina. Em Silves, junto das muralhas velhas do castelo, também as espécies invasoras, como os ailantos foram arrancadas e, com elas, todas as outras, espécies de valor botânico e cultural como a pimenteira. Em Loulé, talvez tenha sido o edifício que vai albergar o novo Arquivo Histórico que se sobrepôs à presença das árvores. Talvez. Talvez se pense que o nosso olhar bebe melhor a limpidez vazia da paisagem, a casa no deserto sombrio. Mas não. A cal da parede esmorece ao sol; ninguém se abrigará da chuva na rua frente às casas; os ruídos dos carros nunca serão quebrados pelo chilreio dos pardais; ninguém verá mais, gatos e cães dormitando na rua. A Rua Sacadura Cabral ficará limpa, mas vazia de paisagem. Como um pulmão jovem, mas doente, porque lhe falta o oxigénio da vida. A vida nas cidades modernas - como diz o arquitecto Ribeiro Teles - não tem futuro se continuar a respirar o ar do alcatrão, do betão e da pedra. As cidades viverão se souberem manter os pequenos pulmões dos jardins, dos pequenos bosques e pomares, das árvores plantadas no seu seio. Como eram as árvores da Rua Sacadura Cabral, em Loulé.
[coluna de «A Voz de Loulé» de 1 março 05]

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