Casimiro de Brito, um poeta abandonado
Há muitos dias que ando com este poeta na cabeça. Não porque o tivesse encontrado agora, mas sobretudo pela ausência de referências, a si e à sua obra, na cidade de Loulé, que o viu nascer.
Conheci a poesia de Casimiro de Brito, em Portimão, pouco antes do 25 de Abril de 74, ao ouvir as declamações clandestinas de outro grande poeta de Portimão, companheiro de Casimiro, Candeias Nunes. Na época falava-se da plêiade poética algarvia, dos anos 50-60, onde pontificavam ainda, para além dos dois referidos, Gastão Cruz e Nuno Júdice, sob a influência do seu mentor poético António Ramos Rosa. Estes poetas organizavam-se em movimentos informais poético-artísticos, dando a conhecer as suas ideias e obras poéticas, através de cadernos editados e vendidos pelos próprios, dos quais os mais importantes foram talvez os Cadernos do Meio-Dia, de Faro.
Em Loulé, Casimiro de Brito, então com apenas 18 anos, já participava nestas tertúlias e criações poéticas e dá corpo ao chamado Movimento Prisma, fundando uma página literária no jornal local «A Voz de Loulé», nesse período sob a direcção de Jaime Guerreiro Rua. O primeiro número da página cultural de nome “Prisma de Cristal” surge n’ «A Voz de Loulé», nº 94, de 16 de Outubro de 1956. Em torno desta página, o poeta agregou à sua volta, e publicou conteúdos culturais de muitos jovens, mais tarde consagrados nomes das letras e artes, como Ramos Rosa, Eduardo Olímpio, Afonso Cautela e Maria Rosa Colaço, entre outros.
O “Prisma de Cristal” edita 26 números, durante cerca de 28 meses, terminando a sua vida cultural nas páginas do jornal local, nº 175, de 15 de Fevereiro de 1959. Durante a sua edição Casimiro de Brito saíu de Loulé para estudar em Faro, seguindo mais tarde para Lisboa.
Foi nas páginas do “Prisma de Cristal” que Casimiro de Brito publicou os seus primeiros poemas de juventude, tendo escrito ainda sobre arte, cultura, poesia, cinema, filosofia. Foi nessas páginas que dissertou sobre os movimentos poéticos, que lançou o seu Movimento Prisma, que apontou o seu gume crítico ao conservadorismo cultural. Foi aqui que formou e treinou o seu espírito progressista, a sua veia crítica, a sua busca de liberdade.
«A Voz de Loulé» dá também conta, em primeira página de Janeiro de 1958, em artigo de João Leal escrito de Faro – também colaborador de “Prisma” – da publicação do primeiro livro do poeta Casimiro de Brito “Poemas da Solidão Imperfeita”, em edição de autor.
Lembro de ter comprado nos finais dos anos 70, dois livros do poeta: “Negação da Morte”, editado em 1974 pela Plátano, um livro de poesia em seis cantos, em defesa da liberdade; e “Um Certo País ao Sul”, editado pela Seara Nova, em 1975, libelo contra a injustiça e a guerra, composto por crónicas escritas entre 1961 e 1974. Nestes anos de crise, volto a devorá-los escutando as queixas do poeta.
Casimiro de Brito é um poeta compulsivo e a sua produção poética e narrativa é permanente, sem ceder a facilidades produtivas ou editoriais. Mais recentemente, em 2001, a Campo das Letras deu à estampa “Na Barca do Coração” e no ano passado, a Quasi Edições publicou “Labyrinthus”, depois de outros três livros do poeta, um dos quais em parceria com Ramos Rosa. Há anos que Casimiro anda escrevendo os fragmentos de “O Livro das Quedas”, segundo ele o seu último livro, mas entretanto trabalha ainda outro inédito “Animal Volátil”. Entretanto a editora Roma dá-nos na colecção “Faces de Vénus” uma obra do poeta em co-autoria com Annabela Rita, “Labirinto Sensível”.
Casimito de Brito, poeta nascido em Loulé, ombreia –arrisco a afirmá-lo – com o grupo dos mais importantes poetas contemporâneos vivos, alfobre onde se encontram, entre outros, Eugénio de Andrade, Hérberto Hélder, Ramos Rosa.
Só um poeta de arrojo poderia ter escrito em 1956, com 18 anos:
Tenho-a no meu colo/ a mulher que vai além/ na rua.../ Tenho-a no meu colo/ apertada em meus braços/ bela e nua...
E em 1999, aos 61 anos:
Sentado no mar que se senta/ a teus pés/ Acaricias um cão na praia deserta. A memória/ insinua-se em palavras que não sabes/ decifrar; areia tecida/ num alfabeto rigoroso. Respiras/ o mar que flutua/ na tela do olhar, nos barcos que brilham/ na mesa das águas. A luz/ em cascata. A teia da morte/ sacralizada/ em cada acto.
Procurei as palavras de Casimiro, na cidade que o viu nascer. Só as encontrei nas velhas páginas de «A Voz de Loulé», amarelecidas de quase 50 anos, no Arquivo Histórico de Loulé. Na livraria da terra, nada de Casimiro para comprar; há muito tempo atrás “Na Barca do Coração”, agora nada. Na biblioteca municipal – que não tem o seu nome, e que bem ficaria desenhado a curvas suaves, com o arabesco mediterrânico dos seus erres e esses, mas pontuado com a verticalidade dos seus is – também o vazio, nem um livro para lembrar aos louletanos que Casimiro está vivo e escreve da melhor poesia que se faz em Portugal.
Em Faro, Ramos Rosa é nome de Biblioteca, os seus livros espalham-se pela cidade, o seu nome evoca-se momento a momento nas novas escritas e movimentos da cidade. Em Loulé, o seu amigo e companheiro Casimiro de Brito é abandonado.
Derramem-se os seus livros sobre as calçadas, declamem-se as suas palavras, para não o ouvir cantar, magoado:
(...) e eu um louletano com milhões de sonhos/ tão longe e tão perto na escala do tempo/ Loulé minha terra natal/ tão longe e tão perto de mim/ como és grande e pequena Loulé assim.
Aqui, outra vez «A Voz de Loulé», desta vez a cultura, está aí. Também para lembrar, conhecer, ler e admirar o poeta louletano Casimiro de Brito.
[publicado em «A Voz de Loulé» de 1Abril2004]