A política, o futebol e a violência

No ano de 2004, o futebol dominará a política nacional. Em contrapartida e como moeda de troca social, a política tem dominado o futebol. Há muitas épocas - para usar a terminologia do futebol - em que o dirigismo no futebol é tirocínio obrigatório para quem quer ascender a cargos políticos de referência. Em qualquer currículo que se preste a provas eleitorais, lá vai a referência à gestão da direcção do clube da aldeola, ou à prática desta ou daquela actividade amadora. Em tempos, era raro o presidente de Câmara que não tivesse lugar cativo na presidência de uma qualquer assembleia geral de um qualquer clube. Do anonimato para a associação, desta para o clube de futebol da terra e deste para o cargo político, este era o caminho certo para o poder. Ora, precisamente, este caminho constrói-se a partir de uma rede de favores e benevolências minúsculas e invisíveis que estruturam a fidelidade de apaniguados, empregados, funcionários e autoridades. Só assim é possível, a quem detém o poder, mobilizar em sua defesa todos aqueles que dependem dessa rede diáfana da solidariedade corrupta, mesmo quando os violentos pontapés, - não na bola de futebol, mas na democracia -, são tão evidentes como os que se têm visto por estes dias nos media. Este fenómeno tem sido alvo de certeiras opiniões, em crónicas que aconselho, e das quais refiro a propósito, a de Miguel Portas no «Diário de Notícias» de 4 de Março e a de Augusto Santos Silva no «Público» de 6 do mesmo mês.Numa época de modernidade em que se repescam os valores da tolerância e da solidariedade, a imagem da violência, nos pés de autarcas, são o leit-motiv para a transferência da violência para os campos de futebol, para as ruas, para as cidades, para as escolas. O futebol, em vez de escola de virtudes, é o campo de guerra, - já não do escape social do stress quotidiano – onde se joga a violentação dos direitos dos cidadãos, da juventude, das mulheres; enfim, dos mais fracos. Em vez de um paradigma da estética e da ética do desporto, o futebol é hoje o palco desportivo dos jogos económicos do poder, das apostas financeiras da alta política. Um penalty, não é a cobrança de uma falta desportiva, mas a perda de possibilidade de mais uma ascensão social, de mais um degrau na escalada do poder, por onde sobem os autarcas de pacotilha.Também os novos estádios são, assim, os símbolos grandiosos de uma nova ética: a ética do futebol como o grande desiderato civilizacional, o palco efectivo da ascensão dos valores do poder autocrático. É por isso que já não interessa o que se passa lá em baixo, nas quatro linhas, onde se joga o jogo para consumir pela arraia-miúda, nos jornais desportivos de toda a semana. Agora, o que é decisivo são os desígnios das bancadas Vip e dos bastidores do futebol, que no fim de contas, também são os bastidores da política dita representativa.
[publicado n' «A Voz de Loulé» de 15Maio2004]

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