O Entrudo e o Carnaval

O Carnaval de Loulé costuma ser separado entre o carnaval dito “civilizado” e o outro que não o seria. São pouco conhecidos os epítetos sob os quais seriam designadas as práticas dos carnavais anteriores a 1906 - data em que a comissão de festejos, decide fazer do carnaval um recurso financeiro para a Misericórdia local – mas Freitas (1991: 166, 176) dá-nos muitas respostas. Expressões como “a brutalidade do velho carnaval”; “a machadada de morte no velho «Momo»”; “se jogava agressiva e grosseiramente ao indecoroso Entrudo”, são exemplos da transformação do Entrudo no chamado Carnaval civilizado. Esse mecanismo de transformação, assumiu desde sempre a ideologia da normalidade, da hierarquia, da disciplina, da contenção, como princípios da monarquia e, mais tarde, do Estado Novo. A própria expressão de carnaval, é de origem erudita e importada dos festejos urbanos de países centrais da Europa.
Aqui a civilidade matou o Entrudo, enquanto expressão da manifestação cíclica do mundo agrário, denotativo do ciclo da germinação – das sementeiras, e das correspondentes coesões sociais, indispensáveis à sobrevivência agrícola e comunitária.
Na verdade, os festejos do Entrudo (ou Entroido, na raia nortenha, como referem Dias ou Oliveira, mas também Entrudo no Algarve, no registo de Marreiros), são práticas de introdução a uma nova fase da vida agrária, em que os elementos de contenção e jejum, não só do ponto de vista da religiosidade cristã, são fundamentais à progressão da floração dos campos, e da vida. É o fim do Inverno e nesta altura o povo extravasa os limites do seu normativo, como a semente rasga o seu invólucro em busca do florescimento. Por isso tudo é permitido, na libertação dos papéis sociais: da sexualidade, da profissão, das hierarquias sociais, do controlo social, da morte. A primordial função social do Entrudo ou Carnaval, como muito bem assinala Espírito Santo (1999: 115) é “a de catalisar os rancores e os desejos reprimidos, trazendo-os à superfície durante estes dias; válvula de segurança para o sistema que o grupo impôs a si próprio, estas cerimónias são a garantia da sobrevivência do grupo”.
Daí que as simulações efectuadas nas práticas tradicionais do Entrudo, que temos registado em recolhas por todo o Algarve, mostrem esse psicodrama: os jovens vestem-se com as roupas do género contrário, contrariando assim a sexualidade explícita; grupos de rapazes e raparigas atacam-se entre si, com papelinhos e farinha – símbolo de fartura de sementeira de pão que germina na terra – procurando estabelecer rituais de namoro e contratualização para futuros casamentos; jovens mascaram-se de fantasmas, de velhos e de caveiras, abjurando a morte, desejando que a ela se substitua uma nova vida, como a que está atrás da máscara; cègadas, com homens vestidos de fardas de autoridade, criticam a torto e a direito, as mazelas da terra, pequenas delinquências e anomias, divulgando muitas vezes o que é óbvio, mas dirimindo assim na praça pública, as discriminações e as injustiças.
Ora, é a esta prática social, a esta função excomungatória, necessária ao renascimento social e cultural, que o Carnaval civilizado põe fim. Neste, o povo não participa, assiste; não se integra, desfila; não se amotina, ou se enraivece, submete-se; não é actor, mas público. O rei Momo, que se destruía como um rei antigo, para dar lugar ao novo, é agora o rei da festa, que de cima do seu trono impõe as suas regras: o horário da brincadeira, o território fechado da peleja, a separação das classes.
Hoje, este carnaval não é uma prática popular de tradição rural, mas um cartaz turístico do efémero, como aliás foi pensado nos anos 60, como resultado, ainda, das tentativas de hegemonização e controlo da cultura popular rural, como manifesta Augusto Santos Silva.
E assim, o carnaval civilizado vai conseguindo aquilo que a igreja, desde a Idade Média, nunca conseguiu: opôr-se aos “costumes dos gentios” e fazer de uma festividade cíclica agrária, de esconjuramento popular, uma manifestação religiosa de abertura da Quaresma.
É claro que estas mudanças não são pacíficas e talvez seja por isso que, opondo-se a uma crescente aculturação estrangeira do Carnaval - processo consequente da turistificação carnavalesca -, muitos optem por chamar a si a detenção da expressão de uma maior portugalidade.

Notas:
Freitas, Pedro de (1991) Quadros de Loulé Antigo. Loulé: Câmara Municipal de Loulé.
Espírito Santo, Moisés (1999) Comunidade Rural ao Norte do Tejo, seguido de Vinte anos depois. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa.

[publicado n' «A Voz de Loulé» de 1.Março.2004]


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