A Liberdade no Masculino
Éramos todos muito jovens, entre os 15 e os 20 anos, para além dos mais velhos, operários e ainda professores, presentes connosco na reunião.
Mesmo jovens sentíamos os apelos do empenhamento cívico e da participação plena, num Portugal que se queria totalmente democrático, que respeitasse os direitos dos espoliados. Éramos estudantes envolvidos nas lutas diárias, na escola, nas fábricas, nos barcos de pesca. Quase todos de nós vivíamos em bairros operários, ou de pescadores, filhos de operários das conservas, de pequenos agricultores, de pescadores.
Nos últimos dias tínhamos comparecido na escola muito pouco tempo, pois as noites eram longas, passadas ao frio e ao vento à porta das fábricas de conservas da cidade, junto das operárias conserveiras, que depois de um dia muito árduo de trabalho resgatavam, ainda, forças para evitar que as caixas de conservas saíssem da fábrica. Era a contrapartida do seu trabalho e dos salários que não recebiam havia algum tempo. Naquela noite concentrámo-nos junto de uma das fábricas, onde o problema se arrastava mais duro, pela arrogância dos patrões da empresa que, paradoxo do tempo, se chamava “Liberdade”. Nessa noite, entre cantos de intervenção e muitas conversas sobre os momentos de luta, compusemos uma canção de utopia, mas de verdade.
Lembrávamo-nos de tudo isto, no momento em que na reunião clandestina se aguardava a chegada de um novo camarada. Os mais velhos, experientes e responsáveis, guardavam segredo de protecção da sua identidade. Apenas sabíamos que teria saído do partido onde militara muito tempo. Queria assim honrar a sua coerência de luta, participando entre aqueles que julgava merecerem a sua confiança. Quando entrou na reunião, o silêncio que o recebeu foi de respeito e admiração: pela sua idade; pelos seus cabelos grisalhos; pelas suas mãos calosas do trabalho de conserveiro; pelo seu gosto pela solidariedade; e pelo sentido de comunhão com os outros. O seu nome não o sabíamos.
A nossa vida política, ainda clandestina, impunha o uso de pseudónimos, os nomes de defesa perante a prepotência do poder. Todos nós escolhemos nomes sonantes, presumidamente fáceis de memorizar, mas difíceis de relacionar. Quando chegou a vez do nosso novo camarada, a sua voz, grave e tonitruante, cheia de confiança e ilusão, não hesitou e disse: o meu nome será Liberdade.
(Este texto é dedicado à memória de José Marques, operário conserveiro, falecido recentemente, em Portimão).
Mesmo jovens sentíamos os apelos do empenhamento cívico e da participação plena, num Portugal que se queria totalmente democrático, que respeitasse os direitos dos espoliados. Éramos estudantes envolvidos nas lutas diárias, na escola, nas fábricas, nos barcos de pesca. Quase todos de nós vivíamos em bairros operários, ou de pescadores, filhos de operários das conservas, de pequenos agricultores, de pescadores.
Nos últimos dias tínhamos comparecido na escola muito pouco tempo, pois as noites eram longas, passadas ao frio e ao vento à porta das fábricas de conservas da cidade, junto das operárias conserveiras, que depois de um dia muito árduo de trabalho resgatavam, ainda, forças para evitar que as caixas de conservas saíssem da fábrica. Era a contrapartida do seu trabalho e dos salários que não recebiam havia algum tempo. Naquela noite concentrámo-nos junto de uma das fábricas, onde o problema se arrastava mais duro, pela arrogância dos patrões da empresa que, paradoxo do tempo, se chamava “Liberdade”. Nessa noite, entre cantos de intervenção e muitas conversas sobre os momentos de luta, compusemos uma canção de utopia, mas de verdade.
Lembrávamo-nos de tudo isto, no momento em que na reunião clandestina se aguardava a chegada de um novo camarada. Os mais velhos, experientes e responsáveis, guardavam segredo de protecção da sua identidade. Apenas sabíamos que teria saído do partido onde militara muito tempo. Queria assim honrar a sua coerência de luta, participando entre aqueles que julgava merecerem a sua confiança. Quando entrou na reunião, o silêncio que o recebeu foi de respeito e admiração: pela sua idade; pelos seus cabelos grisalhos; pelas suas mãos calosas do trabalho de conserveiro; pelo seu gosto pela solidariedade; e pelo sentido de comunhão com os outros. O seu nome não o sabíamos.
A nossa vida política, ainda clandestina, impunha o uso de pseudónimos, os nomes de defesa perante a prepotência do poder. Todos nós escolhemos nomes sonantes, presumidamente fáceis de memorizar, mas difíceis de relacionar. Quando chegou a vez do nosso novo camarada, a sua voz, grave e tonitruante, cheia de confiança e ilusão, não hesitou e disse: o meu nome será Liberdade.
(Este texto é dedicado à memória de José Marques, operário conserveiro, falecido recentemente, em Portimão).
[publicado n' «A Voz de Loulé» de 1.Fevereiro.2004]