Conto Trinta Anos Depois
TRINTA ANOS DEPOIS
[conto publicado na revista bestiário, no Brasil, hoje apenas editora]
Fim da tarde. Regressava, com os
meus colegas de escola, da cidade de Silves onde estudava num ano comercial
para o acesso ao liceu. Um ano obrigatório que o ensino fascista criou para
obrigar os filhos dos pobres a mostrar que tinham competências para passar da
Escola Técnica para o Liceu. Em Portimão, onde tinha nascido e onde morava, a
Escola Técnica terminava no 5º ano e por esse motivo deslocava-me, a pé, do
bairro operário onde morava até à estação dos comboios, para ir até à cidade
dos poetas árabes.
Naquele dia vinha preocupado,
apesar das conversas brejeiras dos meus 17 anos e 7 meses, percorrendo a
automotora de bancos de madeira de um lado para o outro, falando para me
ouvirem sobre a guerra e sobre o 1º de Maio que se aproximava. Na altura andava
a ler “O Processo” de Kafka, algo que os meus colegas, da equipa de futebol de
juvenis da cidade onde estudava, muito estranhavam enquanto jogavam bilhar e me
viam de olhos trémulos sobre o livro. Por isso,
estava um pouco cansado de aldrabices e fantochadas. No comboio viajava
um homem que desconhecíamos mas cujo interesse pelas nossas conversas também
nos assustava. O certo é que desceu atrás de nós, em Portimão, e nos seguiu até ao centro. Nunca soubemos, mas a
suspeita de que era um bufo da polícia política era forte. Em Portimão, cidade
com um peso destacado de operários conserveiros e de pescadores, havia um
enxame de informadores em torno da polícia política. Lembrei-me, na altura, que
havia poucos meses a polícia política tinha ido buscar, ao meu bairro, um
operário que havia sido denunciado...e lembrei-me, depois, de mim. Nessa
altura, já deveria ter “dado o nome para a tropa” (como designávamos o
recenseamento obrigatório para todos os jovens que fariam 18 anos em 1974), pois
Janeiro já lá ia. Não sabia ao certo o que faria aquando da inspecção, mas a
minha ideia e objectivo era dar o salto para França, onde amigos e conhecidos
nossos já estavam, desde 1970. Sentia como que uma aurora de esperança e por
essa razão não me preocupava, de todo. O golpe abortado das Caldas tinha sido
no mês anterior e isso avivava-me esperanças...
À noite, quando me deitei, não
consegui ler muitas páginas da obra de Gorky, “A Mãe” que o Zé Lucas, um
carpinteiro muito culto, me tinha emprestado. Lembro-me de que adormeci
pensando o que faria um puto de 18 anos por terras de França...
No dia seguinte, não recordo
porquê, não me lembro de ter ido à escola. Talvez não tivesse aulas, porque
tinha apenas três disciplinas. Sei que falei com o Márcio Lapa, um amigo que
andava no liceu de Portimão, pois o facto de ser filho de merceeiros o
permitia. Disse-me, nesse dia, que a prima que estudava em Lisboa, em Letras e
estava ligada a um grupo político da extrema esquerda, traria de lá uns
folhetos para distribuir na cidade a propósito do 1º de Maio. Eu, na altura,
recebia informação e militava um pouco nas várias áreas: assistia a debates com
os democratas, recebia agitprop da malta dos grupos marxistas-leninistas, do
movimento dos estudantes de Lisboa, do pessoal mais velho que se agregava num
grupo de amigos da terra. O eme erre era um deles e achava piada à forma como
se distribuía a propaganda: um pequeno petardo nos caixotes de lixo e lá
saltavam milhares de folhetos apelando ao fim da guerra nas colónias e à
mobilização para o 1 de Maio. Uns meses antes, no largo do Dique, em Portimão,
tínhamos rido dos bufos a correr esbaforidos atrás dos papéis clandestinos.
Bom, combinamos receber os
folhetos que viriam no fim de semana e estabelecemos as nossas melhores
tácticas...À noite encontrávamo-nos, o Zé Lucas, que já referi, outro
carpinteiro, o João Lipas e o Mariano Galinha, cauteleiro, que sabia mais de
história e filosofia que os meus doutos professores, no Café Cinema em
Portimão, onde o Mariano nos tentava convencer com um jornal que tinha
aparecido, originário de uma tal ala liberal da assembleia de deputados. Nós, desconfiados, para além da imprensa
clandestina, líamos mas era as folhinhas cor de rosa da ilha da Madeira, no
qual escrevia um tal de VJS, que, curioso, mais tarde viria a escrever no outro
jornal. O Zé Lucas assinava e eu lia os dele; às vezes, com pressa, passava
pelo Bela Bonança, colectividade cultural de Portimão para, à socapa, ler o CF,
o NA e outros que descansavam irrequietos em cima da grande mesa da sala.
Havia outra malta, o pessoal mais
velho dos institutos e faculdades de Lisboa, que encontrávamos sobretudo nas
férias. As do Natal anterior tinham sabido bem a poesia. Na noite, sempre
triste da passagem do ano (lembro-me que essa, de 73/74, tinha sido particularmente triste), tivemos
um final de alegria, quando ouvimos o Candeias Nunes, um senhor mais velho cuja
poesia mais tarde vim a ler, declamar as “Trovas do Vento que Passa”, ou quando
cantamos em cima da voz do Adriano e do Zeca.
Nesta noite de 24, sei que me
deitei já tarde; no outro dia só tinha aulas de tarde...
Dormia num sofá verde, já velho,
numa divisão da casa entre a casa de entrada e o quarto dos meus pais e irmã.
Lembro-me de a minha mãe me ter acordado ao entrar preocupada, no sítio onde
dormia, pois o sofá nessa altura estava atrás da porta. De vez em quando
mudávamos a disposição dos poucos e gastos móveis para dar ar de mudança. A
minha irmã já tinha saído para o liceu, que ficava a cerca de 25 minutos a pé e
o meu pai estaria a trabalhar no hotel. Não me lembro de ter perguntado a minha
mãe o que fazia ela ali, já que a exploração da fábrica, obrigava-a a começar o
trabalho a qualquer hora, quando chegasse o peixe para tratar, e todos os dias era às oito que a sirene obtusa da
fábrica soava. Talvez o mestre e o capataz, o tenebroso Baracho, não tivessem
aparecido ou tivessem dado ordens para a fábrica não laborar. Não tive tempo,
porque quando a minha mãe me disse que tinha havido uma revolução [sim, foi esta
a expressão que ela utilizou], saltei da cama para me deslocar ao liceu, a
escola que ficava mais perto. Só me lembro de ter vestido uma blusa vermelha de
gola alta, justa ao corpo como se usava na época (não deve ter sido de
propósito); não me lembro do resto, mas devo ter posto qualquer coisa, com
certeza. No liceu já estava preparada uma manifestação de alunos que era
dirigida por um professor jovem, o Jonas Lima (mais tarde vim a debater com ele
os problemas da extrema esquerda). A
malta rumou toda para a cidade e a manif foi engrossando, como o rio Arade nos
tempos de chuva quando as águas barrentas trazem as laranjas de Silves, até
chegar ao centro, passados cerca de 20 minutos. Acho que fomos todos correndo.
A cidade estava cheia de pequenos comícios com
conhecidos, os mais velhos dos democratas orando de varandas de
advogados, o Cantos Linas, o Carolino, bem falantes e organizados. Mas o que a
malta nova queria era dar cabo da sede da polícia política. E foram os jovens
que primeiro lá chegaram. Sabendo do que tinha acontecido em Lisboa (tinham
disparado da sede da Rua António Maria Cardoso), havia alguns cuidados e toda a
gente lançava pedras, imprecações e ameaças para a porta vermelha de ferro da
sede da polícia em Portimão. Eu era um puto afoito, nas águas do rio, no
oceano, a roubar fruta na Praia da Rocha e talvez por isso me tenha aproximado da porta. A primeira cuspidela de
asco e o primeiro pontapé foram meus, esse é o meu orgulho. Depois foi a destruição
completa, a malta não quis saber de documentos, nem nada, retratos do Tomaz, do
Tenreiro, do Caetano, saltaram todos em fanicos. Agora, tanto tempo passado,
é que ando armado em investigador e
penso que esses documentos talvez me dessem jeito. Mas enfim, o prazer pagou
qualquer percalço.
A seguir a esta azáfama, que
horas seriam? Só me lembro de estar com duas ou três pessoas, delas só recordo
o carpinteiro João Lipas na sua oficina, ali perto da Igreja e da Escola
Técnica, a serrar madeira e a pintar painéis para a manifestação que ia partir
para Lagos. As palavras de ordem, tinha-as na cabeça, muitas e de ideologias
diferentes, mas escolhi duas, que pintei a negro sobre o tabopan: “Em Luta pelo
Pão!”; “Por um Regime Popular”. Esta última apareceu, uns dias depois, numa
fotografia, num jornal de que não recordo o nome. Durante a manifestação, na
cidade de Lagos, alguém perguntou de quem tinha sido o arrojo de tais frases.
Ninguém sabia, ninguém respondeu. Eu também não. Talvez por não ter comido nada
todo o santo dia...
Depois, bem, depois foram muitos dias, dos mais felizes da minha
vida!
(Abril de 2004)